30.6.07

Não é fácil aprender francês. Nao se trata somente de aprender um novo sistema fonético e adquirir novo vocabulário. O buraco é mais profundo. Aprender francês aqui no Québec significa aprender três idiomas. Vou explicar.

Primeiro, a pronúncia do francês é diferente do que se escreve. As palavras são escritas de uma forma e são pronunciadas de outra forma. Isso acontece porque a últimas letras das palavras quase nunca são pronunciadas. Por exemplo, a terceira pessoa do plural do verbo parler (falar), ils parlent (eles falam) se pronuncia somente "parle". O "ent" do final da palavra é simplesmente desprezado.

Aí o que acontece é que a gente aprende a gramática, consegue ler relativamente bem, mas não consegue entender direito o que as pessoas falam. Para dificultar ainda mais a situação, o habitante do Québec fala de um modo muito característico, quase um dialeto, uma linguagem familiar a eles que é chamada de "joual". Há inclusive dicionário de "québecois-francês" para facilitar a compreensão. Aprende-se a língua culta na escola, mas na rua ouve-se uma outra linguagem, mais popular e menos correta.

Mesmo quem vem da França às vezes tem dificuldade de entender o francês do Québec. Então quem vem para cá tem que aprender o francês que se fala de um jeito, o francês que se escreve de outro jeito e ainda aprender as palavras nativas do Quebec, que só eles falam e que nem os grandes dicionários de francês, normalmente editados na França, trazem. Pfff!

Isso inclui, como no Brasil, as palavras de origem indígena. Por exemplo, Canadá e Québec são palavras dos indios daqui. Uma outra província do Canada, que fica bem no meio do país, tem nome quase impronunciável: Saskatchewan. Algumas cidades do Québec: Atibiti-Temiscamingue, Chibogamau, Saguenay. Nomes que são pronunciados com sotaque francês. Bom, para quem é brasileiro e tem nomes vários nomes indígenas em cidades, do tipo Itaquaquecetuba, Itapetinga e Pindamonhangaba, não pode reclamar de nada.

Os indígenas daqui são considerados preguiçosos e fazedores de confusão. Volta e meia eles aparecem fazendo manifestações e cobrando mais ajuda do governo. Aliás, chamar os indígenas ou "autochtones" do Canadá de esquimós é uma grosseiria. A palavra esquimó significa "aquele que come carne crua". Entra as tribos que existem por aqui, as mais importantes são as dos inuits, iroqueses e hurons.


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Um dos fenômenos de popularidade na internet do Québec são animações humorísticas Têtes à Claque (www.tetesaclaque.tv). A última esquete do programa explora bem essa diferença entre França e Québec.

No episódio mais recente, um casal de quebequenses vai passear em Paris. O garçom francês que os atende inicialmente não entende os canadenses. Mas conversa vai, conversa vem, o papo aumenta. O garçom diz que admira o Canadá e gostaria de visitar o país e levar a família. Diz que tem dois filhos ("gosses") lindos. O casal de quebequenses se entreolha ressabiado. "Gosses" no Québec significa... testículos! O garçom vai adiante e pergunta se eles não querem ver uma foto dos seus "gosses". O casal só falta morrer de vergonha e não sabe o que dizer. É muito engraçado.


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O padroeiro do Québec é São João (Saint-Jean). Na mesma data dos festejos do Brasil, ocorre aqui um desfile que comemora a data "nacional". Sim, o Québec se considera um outro país e sempre luta pela separação do restante do Canadá. Durante a festa, ocorre um desfile que conta alguns aspectos da história do Québec e reafirma o orgulho quebequense de ser um povo dentro de um país.

Tudo bem, o Québec tem um histórico de dominação pelos ingleses, do qual nem gostam de lembrar, mas não sei se eles farão bom negócio em se separar. O Québec, apesar de produzir em torno de 30% da riqueza do Canadá (agricultura, indústria farmacêutica e aeroespacial), ainda recebe alguns milhões do governo federal para cobrir os déficits. Aqui no Canadá funciona assim: os Estados ricos dividem o bolo com os mais pobres. Será que no Brasil acontece desse jeito$ Mistério e bolas de goma, como se diz por aqui. O Estado de Alberta, grande produtor de petróleo, é o primo rico.

Pois bem, o Québec há tempos vem tentando se separar. Já ocorreram dois plebiscitos, mas a separação não foi aprovada. Da segunda vez a diferença foi muito pequena. Há alguns dias a televisão noticiava que foi descoberto que o governo federal "distribuiu" algum dinheiro para que a população votasse na época contra a separação. O Canadá não quer peder uma parte significativa da sua riqueza, inclusive cultural, que o Québec representa.

Assim como os americanos, em sua extensa ignorância da geografia e da cultura mundial, acham que os brasileiros falam espanhol, a gente tem a tendência a pensar que canadenses e americanos são farinha do mesmo saco. Mas não é bem assim. Os canadenses fazem questão de afirmar a sua identidade nacional.

Isso é notado nas três características apontadas pelos canadenses para diferenciar o Canadá dos Estados Unidos: a parte francesa (o Québec), a monarquia (sim, a rainha da Inglaterra ainda é a rainha do Canadá!) e o sistema público de assistência de saúde, apontado como bem melhor do que o americano. Mas os canadenses também não gostam da monarquia. Eu soube que da última vez que a rainha esteve aqui, ocorreram vários protestos da população. As pessoas acham que o país gasta muito dinheiro para manter a estrutura monárquica. Depois dos protestos, ela não teve mais coragem de voltar.

Mas o Québec é ainda mais anti-americano. Na época da segunda guerra mundial o Québec protestou conta a participação do Canada. O canadense e o quebequense fazem questao de pregar um valor bem diferente dos americanos: a simplicidade. Quando se fala de características físicas, a obesidade americana é sempre lembrada. O canadense é bem mais magro e procura a alimentação mais natural. Ele valoriza os esportes e gosta de se locomover de bicicletas e patins.

Aliás, o quebequense tem um jeito meio riponga de ser. Acho que já falei disso antes, mas acho muito interessante. Agora no verão, eles ficam em grupos, com muitas mochilas sujas, dormindo nas praças e debaixo de qualquer teto, quase sempre acompanhados de cachorros, quase sempre com garrafas de bebidas envolvidas em sacos de papel de embrulho para escondê-las, pois não se pode beber na rua. Muitos tomam drogas pesadas. Eles possuem piercings, usam coturnos, calças rasgadas, cintos de metal, adereços que lembram os punks. Ás vezes pedem esmolas. Algumas vezes resolvem limpar os vidros dos carros.

Depois vim a saber que são realmente punks que vem de Toronto ou Vancouver para aproveitar o verão em Montréal. Para descolar um troco ficam limpando os pára-brisas nos cruzamentos movimentados, principalmente nas ruas onde existem bares e restaurantes


Pois bem, voltando à festa de São João, o Québec é celebrado como país. E, internamente no Canada, tem uma autonomia maior que os demais Estados, o que gera até certo ciúme. No desfile do São João, algumas das minhas colegas canadenses do curso de francês se sentiram hostilizadas porque falavam inglês.


Durante o desfile de São João, uma surpresa. Uma das bandas tocando a música "Mamãe eu quero (mamar)". Quase não acreditei. Que diabos isso faz aqui? A história é a seguinte: há algum tempo, um grupo musical brasileiro, formado por três garotas, fez o maior sucesso internacionalmente cantando a tal música em um ritmo dançante, mas não igual ao original. Por conta do sucesso popular, a bandinha do desfile incluiu a canção em seu repertório.


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O Festival Internacional de Jazz de Montréal começou bem. O show de estréia foi de Carlinhos Brown. Equipe do cantor teve um pequeno, para não dizer gigantesco, contratempo. Todos, eu disse todos, os instrumentos ficaram perdidos em algum ponto do vôo de Chicago a Montréal. O baiano simplesmente teve que fazer o show sem nenhum dos seus fantásticos instrumentos de percussão. Foi tudo emprestado dos músicos canadenses. Até o timbau que ele utilizou não era nem de madeira. Era de metal, enrolado com fita adesiva para parecer um tambor tribal.

Aconteceu de tudo: microfonias, instrumentos que deram problema, as backing vocals segurando o timbau para que ele pudesse tocar, uma vez que não havia suporte para o instrumento. Mesmo assim, Carlinhos Brown deu um show de animação. Para quem começou a carreira liderando timbaleiros nas ruas da Barra, não deve ser sido problema fazer um belo show naquelas condições. Acho que um outro músico não conseguiria.

O show foi incrementado com a presença de um grupo de dançarinos vestidos de branco, umas doze ou quinze pessoas. Pensei que eram brasileiros, pois dançavam bem, com bastante suingue. Depois foram apresentados, foi revelado que eram canadenses ou pessoas de outras origens que moram no Quebec.

O público gostou muito, a estimativa de público foi de mais de 100 mil pessoas. Os brasileiros nas primeiras filas, Carlinhos Brown misturando inglês, francês, espanhol e aquele português que só ele sabe falar. Se a animação do público não é igual a um show no Brasil, vale a pena ter o conforto de não levar empurrões ou pisões no pé e de ter o metrô esperando para conduzir o público para casa.

É impressionante como a cultura brasileira está presente aqui. Os quebequenses adoram a percussão e são fascinados pela música brasileira. O prêmio mais importante do Festival de Jazz se chama Antônio Carlos Jobim.

12.6.07

Os palavrões

As aulas começaram na UQAM, a "Université du Québec à Montréal". O meu nível melhorou, agora já consigo entender televisao e escutar programas de rádio. Estou no curso de francês língua segunda, junto com canadenses anglófonos de outras províncias, um mexicano, um espanhol, uma colombiana, uma filipina que imigrou para o Canadá e uma búlgara que mora em Ottawa, cujos pais imigraram para o país há alguns anos.

Aqui no Canadá há uma mistura maluca e interessante das nacionalidades. Na sala há um canadense com nome árabe, filho de filipina e indiano. Os pais se conheceram no Canadá. Ele nasceu em Toronto mas mora na província de Nova Escócia, próxima do Québec, no lado do Atlântico.

Orgulhoso de suas raízes, ele resolveu se juntar à outra filipina da sala, atualmente cidada canadense. Na aula os dois falaram um pouco da cultura das Filipinas e cantaram o hino nacional. Foi aí que fiquei sabendo que o país já esteve sob o domínio espanhol e posteriormente domínio americano.

A multiculturalidade traz esse aspecto bacana de uniao e aprendizagem. Na escola as crianças aprendem a língua (ou as línguas) do país em que vivem. Em casa, quase sempre falam a língua materna, que pode ser mais de uma, caso os pais tenham nacionalidades diferentes. Ou seja, os filhos de pais imigrantes sao criados tendo acesso a duas, três ou mais línguas.

Outra colega minha, agora do curso de conversaçao, tem traços orientais e aprende francês. Magra, alta e bonita, ela foge do padrao físico típico chinês e trabalha com moda em Montréal Os pais dela sao de Hong Kong, mas ela nasceu na Nova Escócia, no Canadá, que fica no lado atlântico. Foi educada em inglês. Em casa, ela aprendeu cantonês, que é a língua da regiao de Hong Kong e proximidades, e mandarim, que é a língua mais falada na China.

Ela veio para Montréal estudar na Universidade McGill, cujos cursos sao totalmente em inglês. Ela trabalha com pessoas que falam inglês e agora exercita o francês para poder falar corretamente com as pessoas da cidade. Ufa!

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Fui a um bar que toca música brasileira. Conheço o cantor, ele é canadense, mas é louco por música brasileira. E - milagre! - canta em português impecável. A noite foi bem interessante, brasileiros e gringos se requebraram aos som de samba, axé e MPB.

Os músicos de Montréal e outras pessoas com cultura mais extensa, admiram e respeitam a música brasileira. Meu professor de francês na UQAM simplesmente fala português! Volta e meia, durante a aula, ele faz algum comentário sobre a cultura brasileira. Ele estudou com outra professora da UQAM, uma brasileira de Minas Gerais.

O Canadá, talvez por lidar melhor com a junçao de várias culturas, demonstra mais interesse pelas demais línguas e culturas da América. Bem diferente dos Estados Unidos. A UQAM abre as portas para diversos pesquisadores brasileiros. Aqui já conheci duas baianas que fazem doutorado na Universidade. Duas nao, uma. Uma é de Salvador. A outra é gaúcha, mas é professora na UESC, em Ilhéus, a minha terra natal. Veja só. E eu que nao conhecia ninguém da UESC, vim conhecer aqui.

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Agora que o verão se aproxima, faz muito calor. O dia acorda às 4 da manhã e a noite só chega às 9 horas. O dia fica muito comprido. É uma boa compensaçao para um país que passa um tempão com os dias frios e curtos. Em pleno verão, a luz do dia só termina às 10 das noite. Por enquanto, a temperatura está quente mas ainda suportável. A previsão para julho é de muito calor. No ano passado, a sensação térmica (temperatura mais umidade, que se sente na pele) chegou a 40 graus.

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No estudo das línguas, os palavrões são sempre um capítulo interessante. Na maior parte das línguas, os palavrões têm conotação sexual. Seja em português, inglês, espanhol ou francês, é sempre assim. Menos no Québec.

Depois de séculos de influência maciça católica, qual a coisa mais transgressora que poderia existir? Falar em vão o santo nome das coisas da Igreja. Então ficou combinado assim. Depois de topar o dedão do pé na perna da mesa, apertar o dedo na porta, ou mesmos xingar uma pessoa, nada melhor do que citar os santos nomes da Igreja Católica. Nomes sagrados, que não deveriam ser pronunciados em qualquer ocasião. Cálice, óstia, sacramento, tabernáculo. Para quem não sabe - eu mesmo não sabia - tabernáculo é o "pequeno armário ou caixa com tampa que contém as hóstias da Eucaristia e ocupa, geralmente, numa igreja, o meio do altar". Quando se emenda um nome no outro, é uma loucura. O palavrão fica mais pesado, aumenta a potência. Cálice-da-óstia-do-sacramento-do-tabernáculo é um terror. Sai de baixo.

Falar essas palavras no dia-a-dia significa proferir palvrões. Durante a missa católica, é claro, não há problema. Para quem vem da cultura latina, isso parece algo engraçado e até ingênuo. Mas são coisas da cultura de um outro povo.

7.6.07

Futebol e religião

O mundo tem coisas que a gente não imagina. Conversando com algumas pessoas, soube de aspectos interessantes que ocorrem aqui em Montréal.

A Copa do Mundo e a Copa das Américas movimentam as comunidades dos imigrantes no Canadá. Durante a época da Copa do Mundo, principalmente, Montréal se enche de bandeiras. As mais vistas: Portugal, Itália e França (países que cederam inúmeros imigrantes para o Canadá). E, claro, não poderiam ser esquecidas, as bandeiras do Brasil.

Bacana é que não só os brasileiros as conduzem pela cidade. Praticamente todos os latinos: venezuelanos, colombianos, mexicanos, paraguaios, bolivianos. Não acredito que haja argentinos que façam isso. Até os haitianos, que formam um grande contingente dos imigrantes daqui, pois também têm o francês como língua materna, torcem pelo Brasil.

Nos táxis, que os haitianos costumam conduzir, a bandeirinha do Brasil fica presa na antena do carro durante a Copa. Aqueles jogos amistosos, que o Brasil faz de décadas em décadas no país deles, parecem surtir efeito impressionante. A que isso será devido? A vingança do futebol americano terceiro-mundista contra as potências européias?

Para os canadenses de origem parece ser um espetáculo estranho, uma vez que o esporte nacional aqui é o hóquei, praticado sobre o gelo.

Diferente do que acontece com muitas comunidades de imigrantes, que se reúnem em determinados bairros, os brasileiros se espalham por toda a cidade. Mas eles se reúnem principalmente nos eventos musicais da cidade, quando se apresenta algum artista brasileiro. Nesses eventos, os brasileiros ficam no gargarejo, nas primeiras filas. O Festival de Jazz deste ano será aberto por Carlinhos Brown. No ano passado o papel foi de Daniela Mercury. A brasileirada, com certeza, vai se reunir.

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Montréal tem uma característica interessante, que lembra Salvador. A quantidade de igrejas. O Québec é majoritariamente católico, devido à herança francesa. Até as décadas de 60 e 70, a influência da Igreja Católica sobre a população era intensa, chegando a pregrar que os casais tivessem grande quantidade de filhos casais. Depois da "revolução tranquila", a partir do final dos anos 60, coincidente com a revolução sexual, a influência da Igreja Católica diminuiu. Alguns templos chegaram a ser vendidos, mas a maior parte persiste e existem alguns exemplares fantásticos. O "Oratoire Saint-Joseph" fica em uma colina e é deslumbrante. De lá tem-se uma vista genial da cidade. A igreja tem um órgão gigantesco e guarda os restos mortais de um religioso do Québec que foi canonizado.

A experiência de visitar templos religiosos grandiosos é sempre emocionante. Por mais que a não-prática da religião seja mais forte do que a prática cotidiana, a relembrança da educação e criação familiar sob os preceitos religiosos, e, mais intensamente, a lembrança de pessoas queridas e devotas, sempre me causa muita emoção.

A Catedral de Notre Dame é um outro belo tesouro, ainda a ser visto. Outro aspecto religioso é que aqui em Montréal tem até procissão, realizada pela comunidade portuguesa. Com andor e senhoras com véu. Dá para crer?