25.1.11

Entre índios e inuits

É certo: em dia de baixa temperatura ou de nevasca, vai haver dificuldade de transporte. Seja para quem usa transporte público, seja para quem tem o seu próprio carro.

O ônibus está lotado, sou obrigado a esperar o próximo. O seguinte vem confortável, com assentos disponíveis. Mas eu já estou atrasado. Para completar, ainda há ruas interditadas. O trajeto é desviado, tenho que descer em local mais distante, o que estica ainda mais o tempo de caminhada. Se tivesse vindo a pé talvez teria gasto o mesmo tempo, ou menos.

Já conheço alguns rostos que repetem a viagem todos os dias, no mesmo horário, indo para o trabalho ou para os estudos. Os casacos de frio também se repetem e tornam fácil a identificaçao de quem o porta. No inverno eles sao repetidos infinitamente até que se tornem insuportavelmente enjoados. Mas é o tempo em que o frio termina, os casacos voltam para o armário e sao esquecidos até a estaçao do próximo ano.

Em temperaturas chegando a -20, tem-se a impressao de que a média da estaçao (que deve ficar entre -5 e -7) parece clima de primavera. Entao fico tentado a ir caminhando ao trabalho, quando o termômetro subir um pouco. Isso parece possível. Felizmente, ainda nao cheguei ao estágio de alguns malucos canadenses que se agasalham e enfrentam as ruas de bicicleta em temperaturas negativas.

Uma professora que tive em Montréal costumava falar que o frio nao é problema, basta estar bem protegido. No início da vida profissional ela havia morado no Norte do Québec, regiao onde habitam os inuits (esquimós), onde o clima nao dá muita diferença do Pólo Norte e onde só se chega de aviao. Segundo ela, para os moradores da pequena cidade gelada, ir para um local como Montréal - que já é um terror de frio para os brasileiros tropicais -, por exemplo, dentro da mesma província, é como ir para a Flórida. Comparaçao de temperaturas que só canadense entende. Ou acha graça.

Pela história da professora, deu para notar que nao é só no Brasil que os profissionais em início de carreira recebem propostas de trabalho nos cafundós. Ou seja, trabalhar no Norte do Québec nao dá muita diferença de trabalhar no meio da Floresta Amazônica. Nao tem mosquito nem cobra, mas tem urso. E muito gelo e frio.

21.1.11

Para ler um português

O senhor tinha os cabelos totalmente brancos, vestia um casaco de la e eu me dei conta que ele lia um livro de José Saramago durante a curta viagem de ônibus. É uma curiosidade que sempre tenho, confesso agora. Ou me dou conta disso: fico tentando descobrir em que língua lêem as pessoas no transporte público do Canadá. Eu fico tentando achar alguma palavra familiar, um título conhecido, o nome de um autor, entre os livros corajosamente empunhados entre as paradas e as partidas de ônibus, metrô ou bonde - sim, Toronto tem bondes. Claro que o inglês predomina, mas às vezes tem francês, espanhol, russo, línguas orientais e até português! Hoje eu achei alguém lendo em português.

O ônibus estava lotado, em consequência do inverno. Os ciclistas recolheram os seus camelos e poucos pedestres se arriscam a caminhar. Para uma pequena distância de três quarteiroes, as pessoas tomam transporte público. Ninguém quer andar na calçada cheia de neve, com o vento açoitando na pele, dando a impressao que o frio chega a -15 graus, mesmo que o termômetro indique ''apenas'' -8. Nesse clima, míseros dez minutos de espera em um ponto de ônibus sao uma eternidade.

Além do aumento considerável do números de passageiros, estes também aumentam de volume. E nao estou falando do tradicional aumento de massa corpórea que resulta das deliciosas massas, sopas e cremes exigidos pelo inverno. Falo dos imensos casacos que aumentam a circunferência corporal e fazem todos semelhantes a um ''bonhomme'' de neve. Entao fica um aperto danado no ônibus. E todo mundo torcendo que o inverno acabe logo, para poder voltar a caminhar ou ir ao trabalho de bicicleta. Sim, esse sonho é possível no Canadá e suas cidades cheias de ciclovias.

No ônibus cheio, que me fez lembrar os melhores momentos da linha Nazaré-Federaçao, em Salvador, às 6 horas da tarde, com todo o seu esplendor de apertos e cheiros, o senhor passava os olhos pelas longas sentenças de Saramago.

Fiquei com saudade e me deu muita vontade de voltar ler em português. Nada de notícias rápidas e da leitura desconfortável na internet. E sim dizer sim ao prazer de ler no suave aconchego da língua materna, sem a necessidade (ou a precipitaçao) de ir toda hora ao dicionário para aprender o significado de uma nova palavra, seja em inglês ou francês. Se bem que, ao ler Saramago, o dicionário sempre ajuda para aumentar o entendimento entre Brasil e Portugal.

O senhor viu o seu ponto se aproximar, fechou as letras de Saramago e colocou o livro dentro da pasta. Um senhor português idoso e distinto. Poderia ser brasileiro, mas os portugueses estao há muito tempo no Canadá, enquanto os brasileiros sao mais recentes, no máximo há vinte e cinco anos, entao sao mais jovens. O senhor pedia licença para sair do ônibus com um sorriso no rosto. Pedia gentilmente para abrir espaço entre os passageiros amontoados e acolchoados pelos grossos casacos de frio intenso. Ele devia estar feliz em poder fruir da imaginaçao de Saramago.

Lembrei que ainda tenho o moçambicano Mia Couto antes de voltar a qualquer autor em português. Possivelmente ele será a minha próxima parada literária. E lembrei que, infelizmente, há poucos - e disputados - exemplares nas bibiotecas, tanto de Montréal como de Toronto. Acho que só vou ter esse privilégio na próxima mala de viagem que trouxer do Brasil.

Desci no mesmo ponto em que o provável lusitano desceu, na Queen Street. Fui em direçao ao trabalho, aproveitando o caminho aberto aberto pelo português, para conseguir sair do ônibus. Fui seguindo o caminho das Indias.