31.7.07

Parte XII

Sem dar noticias há alguns dias, pois o tempo apertou mais ainda. Reta final do curso de francês e muita coisa para fazer. Só agora estou mais folgado.

Redação, apresentação oral, análise de texto, prova escrita. Optar por estudar francês no curso de extensão de uma universidade teve inúmeras vantagens. Aprendi muito sobre a cultura do Québec. A escrita se desenvolveu bastante, quase não consigo acreditar quando vejo a diferença nos primeiros textos. A grámatica foi esquadrinhada. Mas também há algumas desvantagens.

A parte de conversação fica em segundo plano - e ela é essencial para mim. Para compensar, ao mesmo tempo me matriculei em um curso somente de conversação. Foi aí que realmente consegui colocar em prática o conhecimento gramatical aprendido. A professora Tessa, francesa formada em Direito e Pedagogia, casada com um quebequense, que já morou e estudou na Alemanha e na Inglaterra (fala bem também inglês e alemão), me proporcionou (e tem me proporcionado, pois ainda não acabou) aulas muito agradáveis, nas quais a discussão sobre temas diversos corre livre.

Quando se viaja para estudar uma língua, normalmente compra-se o pacote de escola + hospedagem com família em alguma agência de viagem. As escolas sabem que os visitantes procuram conjugar estudos e diversão. O ritmo é menos exigente. Aprende-se muito bem, mas sem tantas minúncias de notas, informações históricas e avaliação detalhada de apresentação oral. Normalmente as testes são mais curtos e ocorrem cada semana, na sexta-feira, para evitar que os assuntos acumulem. E que os estudantes aumentem o fim-de-semana, dando prosseguimento à festa da quinta-feira. As escolas também são mais caras!

Bom, nas duas modalidades, em uma escola de línguas e em uma universidade, é inegável que aprende-se bastante.

Durantes as aulas de conversação aprendi coisas muito interessantes com os alunos que vêm de outros continentes, como os norte-africanos da Tunísia e da Argélia. Por exemplo, a colega muçulmana opta por não usar o véu, que se chama hidjab. Como, em uma cultura tão rígida, em que as mulheres não podem mostrar orelhas e cabelos, pode existir algo sensual como a dança do ventre? A colega da Argélia me disse que é uma religião muito contraditória, na qual existem pessoas que seguem do modo como acham correto. Tem gente que fuma, bebe, tem gente que não reza na hora exata e tem gente que não usa o véu. E eu que pensava que essas transgressões só eram comuns no catolicismo...

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O verão em Montréal. Depois do frio de abril, o verão se instala sem dó. Há um fenômeno que ocorre no verão, que se chama "canicule". Durante esse período faz um calor de rachar durante três semanas. Até agora, o canicule não chegou. Mas o calor atinge os 35 graus. Dentro de casa! a manteiga, coitada, teve que ir para a geladeira, pois corria o risco de sumir. Para piorar a situação, em Montréal não tem aquela brisa fresca do mar da Bahia. Mas o povo daqui não tá ligando muito, não. Quer mais é aproveitar, pois acaba logo e a neve em breve volta a cair durante um período de mais de quatro meses.

Montréal é uma cidade essencialmente turística. Os americanos vem para cá com a impressão de ter acesso a uma Europa mais próxima e acessível. Para animar a cidade, em julho acontecem inúmeros festivais. Depois do Festival Internacional de Jazz, ocorreram o Juste Pour Rire (de paradas e shows de humor), a Love Parade (festas e músicas), parada LGTB, festival de cinema, festival de música africana. Agora ocorre o FrancoFolies, festival de música francesa. Artistas e cantores do mundo inteiro se apresentam na cidade.


Teatro Pavana (da Itália) presente no Festival Juste pour Rire

Julho vai acabando e as aulas vão retornando. Os operários da construção civil voltam a trabalhar. Alguns restaurantes, que estavam fechados para as férias de verão, reabrem. Aliás isso é algo inconcebível para mim. Como, em uma cidade turística, os restaurantes podem se dar o luxo de fechar em plena alta estação? Claro que são restaurantes de pessoas do Québec. Um imigrante chinês, italiano, vietnamita ou polonês nunca fecharia o seu estabelecimento no verão. Os turistas precisam comer. E estão dispostos a pagar.

E os operários da construção? Eles formam uma das classes profissionais mais invejada do país. Além do bom salário (melhor do que muitos trabalhadores com diploma universitário), durante o inverno brabo, eles não trabalham, pois o clima não permite. O governo paga uma espécie de seguro-desemprego para eles, que não é muito abaixo do que normalmente recebem. No verão eles têm direito a duas semanas de férias, para que possam curtir o sol e viajar. Para que melhor?

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Existem muitas diferenças entre um país rico e um país em desenvolvimento. Comparando a vida das pessoas aqui no Canada, dá para se perceber algumas coisas interessantes. Os salários não são exageradamente altos. Mas o mínimo fica em torno de 1.200 dólares. Dá para a pessoa pagar aluguel, comida, transporte e viver com dignidade.

Como se não bastasse ganhar mais, as tarifas públicas ainda sao menores que no Brasil. O telefone custa somente 40 dólares com pulsos livres. Normalmente os prédios sao baixos de apenas três andares, não tem o custo dos elevadores. Nem o custo de porteiros, uma prática que a violência urbana obriga os condomínios brasileiros a manter.

Outro dia fui almoçar em um restaurante popular, de comida típica do Québec, em um bairro tido como "pobre" em Montréal. As casas são praticamente idênticas às do resto da cidade. Se eu não soubesse que se tratava de um bairro proletário, não saberia identificar a diferença. O professor canadense, que acompanhava o grupo no passeio, me disse: "Não dá para comparar com as favelas do Brasil, não é mesmo?".

O que distingue as pessoas que moram naquele bairro é que normalmente não trabalham e quase sempre têm problemas com drogas e álcool. Não trabalham. Como assim?

É. Vivem com o dinheiro do seguro-desemprego e com a ajuda de 100 dólares mensais que o governo paga por cada filho. Tem gente que vive com isso e só de vez em quando faz algum bico para complementar a renda. A escola das crianças é pública. Tudo bem, no Brasil a escola também é pública e existe a bolsa-escola para cada criança. Só que a ajuda ($$$) governamental brasileira não dá para quase nada.

E aqui nem há a desculpa que emprego é difícil, como no Brasil. O resultado é que há um certo comodismo. Vive-se de seguro-desemprego e de fazer bicos "por debaixo da mesa", como se diz por aqui.

E além disso, uma coisa que se percebe por aqui é que a rede de ação social é um artigo de primeira qualidade.

Vou explicar. No Canadá, assim como nos Estados Unidos e em boa parte da Europa desenvolvida, o trabalho voluntário faz parte da cultura. No Québec, talvez seja até um pouco menor do que no restante do Canadá inglês, onde esse aspecto parece ser mais intenso.

Parece que, quanto mais frio um povo (no sentido de relações pessoais), mais articulado socialmente ele se torna. Por aqui, vários eventos são feitos com a ajuda de voluntários ("bénevoles", em francês). Aqui existe um site no qual se fica sabendo em que projeto ou evento se tem necessidade de voluntários. E os canadenses reservam uma parte do seu tempo para isso. Desde a participação na organização da festa da escola do filho, até participação em "marchas" pela cidade, para protestar ou chamar a atenção sobre um tema.

Aliás o pessoal de Montréal adora fazer uma passeata para qualquer coisa. Principalmente no início do verão. Vi marcha para chamar atenção para o cancêr abaixo da cintura (em homens e mulheres), marcha para o câncer infantil, marcha para proteção dos animais de estimação, marcha dos ciclistas pelo respeito no trânsito, marcha pela liberação da maconha, marcha de ciclistas nudistas. Isso, os peladões desfilaram para chamar a atenção não sei para que motivo, talvez para incentivar a produção de bicicletas com selins mais confortáveis, digamos assim.

Quando Montréal sofreu, há alguns anos, um grave problema do "verglas", em que a chuva caía líquida e congelava sem virar neve, formando grandes blocos de gelo, que derrubavam árvores e destruíam toda a rede elétrica, em pleno inverno de -30 graus, a população se articulou. As pessoas mais abastadas acolhiam os outros em suas casas com lareiras. O trabalho voluntário chega a contar até como ponto extra no currículo profissional.

Eu mesmo participei de um curso de conversação de francês feito por voluntários canadenses para imigrantes de todas as nacionalidades.

No Brasil, a rede social começou a se articular há menos tempo. Diferente dos Estados Unidos ou Europa, dificilmente no Brasil se vê a figura do ricaço que doa uma parte do seu patrimônio para uma obra social, uma escola, museu ou universidade. O empresário brasileiro ainda acha que pelo simples fato de empregar pessoas está fazendo um "grande" papel social. Ele não lembra que é o empregado que gera a sua riqueza.

Pois bem, eu acredito que para um país se desenvolver, a sociedade tem que estar muito bem articulada. O tema social é tão complexo, que somente o governo não vai conseguir dar conta de tudo. Nunca.

11.7.07

Mais notícias - parte XI

Aniversário

Depois da comemoração da data nacional do Québec no dia 24 de junho, no dia 1 de julho é o dia do Canadá celebrar o seu aniversário. Data de aniversário? Coisa estranha para a gente. No Brasil, a data nacional é considerada como sendo o dia sete de setembro, data da independência. Mas não se fala em aniversário. Pelo menos é o que os astrólogos consideram na hora de fazer as previsões do país. O Brasil seria então do signo de virgem e o Canadá do signo de câncer.

Diferente da comemoração que aconteceu no Québec, o Canadá fez e faz questão de valorizar as comunidades de imigrantes. E o país inteiro valoriza as chamadas "minorias" - nem tão minorias assim. Por exemplo, o representante da rainha da Inglaterra no Canada, chamado de governador-geral, é uma mulher. Negra. O ministério do patrimônio canadense é chefiado por uma mulher. Japonesa. Dá para sentir que não se trata apenas de querer ou não valorizar. É um fato incorporado às características do país.

A governadora-geral esteve recentemente em visita ao Brasil. Ela é ex-apresentadora de TV e bastante carismática. Como é negra e de origem haitiana, ela é bastante simpática aos povos negros do terceiro mundo. Quando esteve no Mali foi recepcionada por uma multidão. No Brasil ela fez questão de ir à Salvador.

Quanto ao Québec, compreende-se que a província a todo tempo queira reafirmar a sua identidade e as suas origens. É a forma encontrada para se diferenciar do resto do país. Nas placas dos veículos do Québec existe a inscrição "Je me souviens", que quer dizer "Eu me lembro". O povo do Quebec não quer esquecer as tais origens francesas. E, fiel ao seu passado, acaba por dificultar a incorporação de novos elementos culturais. Faz até um certo sentido, pois os quebequenses conseguiram manter a língua francesa depois de dois séculos (!) de dominição inglesa.

Mas no desfile do aniversário do Quebec não havia praticamente referência às comunidades culturais de imigrantes presentes na província. Nos festejos que aconteceram em Ottawa, a capital do Canadá, o tema sempre esteve presente, do discurso do Primeiro-ministro aos shows que foram apresentados.

Achei interessante que durante a transmissão da festa, o canal de televisão fez a seguinte pergunta para várias crianças: "Para você, o que é o Canadá?". Uma das crianças dissse: "É um país para onde vem gente até do fim do mundo". Acho que o menino quis dizer que vem gente de todo o mundo.

É mesmo essa a impressão, depois de sair na rua e ver indiana vestindo sari, indiano sikh com o turbante enorme na cabeça (o cabelo e a barba não podem ser cortados), libanesa usando hidjab (o véu que cobre cabelos e orelhas), africanos usando túnicas coloridas e até canadenses de longa data, cheios de piercings e roupas pretas. Todos dentro do mesmo ônibus.


Bóia-fria

Uma mania nacional no Canadá é a farofada. Como assim? Claro que eles nao costumam consumir farofa, uma coisa que nem em sonho aparece por aqui. Os canadenses têm o hábito de levar lanches para todos os lugares. Um hábito que provavelmente herdaram dos ingleses, que se comportam da mesma forma, como pude conferir na minha viagem à Inglaterra, há alguns anos.

O lanche vai para todos os lugares e ocasiões. Para o parque, para a escola, para o passeio na beira do rio, para o curto intervalo de almoço de trabalho. Qualquer intervalo lá estão eles, os farofeiros (quantas vezes também encomendei a marmita durante o trabalho?) sacando sanduíches, bolos, sucos de caixa, frutas frescas e secas, biscoitos, barras de cereais e tudo mais que pode ser carregado dentro de uma bolsa ou mochila. Além de custar mais barato, o lanche é mais saudável do que comer hamburgueres ou pizzas e nem sempre há nos parques local disponível para comprá-los.

Não há vendedor de churrasquinho de gato, nem baiana de acarajé, nem ambulante com isopor oferecendo cerveja e refrigerante, nem barraca de praia com um monte de tira-gostos no cardápio, nem queijinho coalho com fogareiro causador de queimaduras. Aliás um dos mistérios mais intrigantes da Bahia é como o vendedor de queijo coalho consegue passar no meio de uma multidão, no meio de uma festa popular, e não queimar ninguém? Nunca consegui entender isso, e para evitar, sempre preferi me desviar quando algum vendedor desses aparece.

Para quebrar o galho com o lanche, aqui há sempre máquinas de bebidas e lanches. Colocou a moedinha, voilà, comida e bebida na mão. No Québec também existem os "depanneurs", que são correspondentes às lojas de conveniência. Depanneur é uma palavra que no francês da França tem um outro sentido. Lá a palavra significa o mecânico de carros que presta assistência a qualquer hora. O "depanneur" do Québec, por sua vez, presta os primeiros-socorros noturnos essenciais, como cervejas, vinhos, cigarros, chocolates, jornais, leite e lanches. Essas coisinhas sem as quais fica muito dificil viver em cidade grande. Em Montréal, a cada dois ou três quarteirões se acha um depanneur. Quase sempre de propriedade de imigrantes. Tem loja de chinês, árabe, indiano, libanês e por aí vai. Os depanneurs são típicos do Québec e são algo de que os quebequenses se orgulham.

Então, em vez de comprar mais caro no depanneur, o Canadense sabidamente leva na bolsa o seu lanche.

O Québec tem tradição de mais liberalidade do resto do Canadá inglês. Na província francesa, as bebidas alcoólicas podem ser vendidas nos mercados e nos depanneurs. No restante do Canadá inglês, não. Somente nas lojas especializadas em bebidas. Outra diferença é o horário das casas noturnas. Na parte inglesa, inclusive na metrópole Toronto, as casas noturnas fecham às 2 da manhã. No Québec a tolerância é maior, a lei permite o funcionamento até e a venda de bebidas alcoólicas até as 3 da manhã. Mas, em nenhum dos dois locais se pode sair às ruas bebida alcoólica, uma vez que a maior parte tem embalagens de vidro. Ok, tudo bem, até na nossa velha Salvador, a venda de cerveja em garrafa é probida nas festas de largo. Para prevenir aquela tradição ancestral de brigas e acidentes com cacos de vidro em forma de armas. O que acontece é que há o "jeitinho popular", como em qualquer cultura latina. Para disfarçar, o povo do Québec, quando está na rua bebe a cerveja enrolada no saco de papel marrom ou de plástico do supermercado.

Além do lanche, a mochila do quebequense carrega o capacete da bicicleta, a garrafa de água e o pulôver para a mudança do tempo, que pode ocorrer qualquer hora. E, de acordo com o gosto, algum trago de bebida quente ou qualquer outra substância para animar a festa.

Os carros de bebês

Para poder sair de casa, os canadenses que têm filhos pequenos não se apertam. Em um país em que não existem babás e que as avós normalmente estão viajando pelo mundo, com os seus novos namorados ou em seus programas com os grupos da terceira idade, os pais tem que levar as crianças, não importa o jeito. Os carrinhos de bebê estão por todos os lados. No início, depois de ver tantos carrinhos de bebês pelas ruas, pensei que essa história de baixa natalidade fosse conversa para boi dormir. Depois vi que os pais andam com os carrinhos por todos os lados. No metrô, nos ônibus, nas festas populares e nos shows. Para não perder o calor do verão e os eventos, vale tudo. Já vi carrinho de bebê rebocado por bicicleta. Já vi gente de patins empurrando o carrinho. Já vi bicicleta dupla, em que o pai vai pedalando na frente e o filho vai atrás, fingindo que também pedala. Já vi gente que carrega filho junto do corpo, enrolado em panos, como nas tribos africanas, como se fosse uma bolsa de canguru. Tudo vale a pena para poder sair de casa no verão.

Aí é que fui perceber um lado cruel da violência e da desorganização do Brasil. Simplesmente não e possível tomar um ônibus ou metrô com um carrinho de bebê ou se deslocar em grandes distâncias pelas ruas brasileiras empurrando o tal carrinho. Os pais não se atrevem a fazer isso. A calçada é esburacada e interrompida. Ok, aqui também, nas estações de metrô, faltam rampas para deficientes físicos e que também serviriam para os carrinhos de bebê. As mães precisam de braços fortes para subir os degraus com o peso duplo de bebês e carrinhos.

No Brasil, por sorte, as famílias permanecem um pouco mais compreensivas e de vez em quando aparece algum parente caridoso para dar uma força quando os pais quem sair. A avó e o avô, tradicionalmente encarregados no passado, talvez estejam com a agenda cheia de compromissos e não tenham muita disponibilidade. O âmbito familiar, no Brasil, ainda cumpre o papel de apoio que nem o governo, nem a rede de organização social, cumprem com eficiência.

A turma do nivel 5 na UQAM

Aí a turma do nível 5 do curso de francês da UQAM. A maior parte é de canadenses anglófonos, mas tem um brasileiro (eu, é claro!), uma colombiana, um mexicano e um catalão (espanhol). Além de uma búlgara e uma filipina, mas essas duas são imigrantes.

O professor é esse de camisa listrada, quebequense de raiz, que nos proporcionou um curso riquíssimo sobre a cultura e a história do Québec. O que nem sempre acontece por aqui. Dos 5 professores que tive até agora, 3 sao franceses, acredite. Clicando na imagem ela amplia.

A foto foi tirada depois do almoço de despedida em um restaurante de comida québecois. Comi uma deliciosa "Tourtière", uma torta de carne típica da região.