28.10.04

Para gostar de comer bem


Para gostar de comer bem, é preciso não ter preconceitos - ou ter o mínimo possível. Saber comer bem não é comer muito, nem escolher pratos caros. É experimentar sabores e deixar que o paladar viaje por atmosferas e mundos distantes.

O não gostar de alguma coisa é quase sempre resultado de experiência pouco feliz na hora de comer. A criança que foi obrigada a consumir quiabo, espinafre ou qualquer outra coisa, vai provavelmente registrar no futuro a recusa àquela comida.

Negar a permissão e o acesso a novos sabores, sob o discurso do "não gosto", sem mesmo provar, indica pouca disponibilidade de expandir horizontes. Comida é cultura. A bagagem cultural, como se sabe, é adquirida com vivência e experiência. A abertura para novos paladares indica novas possibilidades.

Pessoas que moram em locais no interior, sem acesso ao mar, frequentemente não gostam de peixes e mariscos. Não foram habituados a consumí-los. Imagine o estranhamento ao se deparar com um caranguejo inteiro pela frente. Por onde começar a comer? Já alguns litorâneos, por exemplo, aqui na Bahia, evitam as comidas sertanejas, por taxá-las de pesadas.

É difícil gostar de tudo. Impossível. Sempre haverá algo que não será suportável - ou, ao menos, desejável. Bacana é poder experimentar sem preconceitos, abrindo mão de sabores que já conhecidos e se entregando ao prazer da novidade.

27.10.04

Dodge Ball

Nos Estados Unidos, o jogo de queimada (ou baleado, aqui na Bahia) é chamado de dodge ball e considerado um esporte, ainda que de segunda linha. E a queimada é a grande atração da comédia Com a Bola Toda (Dodge Ball, EUA, 2004).

Peter LaFleur (Vince Vaughn) é o dono da academia Average Joe, decadente e cheia de dívidas. Quem pretende comprá-la é o egocêntrico White Goodman (Ben Stiller), dono de um império da ginástica, as academias Globo. O banco credor põe a advogada Kate (Christine Taylor) para cuidar da cobrança. Ela se apaixona por Peter e decide ajudá-lo a salvar a academia. Com a ajuda de funcionários e de alguns poucos clientes assíduos, eles resolvem formar um time e se inscrever no torneio de queimada para ganhar 50 mil dólares de prêmio e pagar a hipoteca.

O filme traz humor adolescente, mas sem apelações ao tema do sexo, recorrente nas comédias atuais. As cenas de competição ajudam a segurar o pique, proporcionando diversão sem compromisso. Aparição relâmpago do ator Chuck Norris, estrela de filmes de luta dos anos 80, no papel dele mesmo, agora como um dos juízes do torneio.

26.10.04

Delícia de grão
O arroz é um vegetal sem sabor, e talvez seja essa a sua melhor qualidade. Por não ter sabor, o arroz dá vida a tudo que se aproxima dele. E ainda tem a vantagem prática de poder ser apreciado como prato único, seja em forma de sushi, risoto italiano, paella, galinhada ou qualquer outro acepipe feito em uma única panela. Mais uma vantagem, são pratos que não sujam muita coisa - e a panela de preparo, se for apresentável, ainda pode ir à mesa..

Fazer um arroz bacana não é difícil, mas é preciso ter paciência e dedicação. Esperar que o arroz absorva o líquido e cozinhe. Essa exigência talvez seja a maior dificuldade em prepará-lo. Um arroz simples e bem feito, só com alho e um fio de óleo, pode ser consumido puro, de tão bom que fica.

Não adianta fazer um prato de arroz com milhares de coisas, do tipo milho, ervilha, azeitona, presunto, salsicha e o escambau. Se o arroz não for bem temperado, não fica tão bom. Na pressa, às vezes vale o arroz escorrido, cozido em bastante água e sal e que não corre o risco de ficar empapado. Mas o sabor nunca será o mesmo.

Ah, que delícia é preparar um risoto de arroz arbóreo batendo papo, mexendo a colher, jogando vinho na panela e para dentro da goela. Nada se compara àquele arroz que absorve o caldo da galinha, carne ou do camarão, mais vinho, leite ou até mesmo suco de laranja. O arroz absorve tudo e transforma em sabor divino.

23.10.04

Parentes
Eu vou me permitir falar em modo bem pessoal. Acabo de vir da festa de casamento de um primo. Festa bonita e bacana. Ainda sob os eflúvios etílicos de duas doses de scotch black label, eu me atrevo a teclar.

A muito custo fui à festa, brigando comigo mesmo. Só mesmo uma pessoa querida para me fazer ir a um casamento. Acho uma coisa batida e manjada, cafona, falsa, acho que não existe mais o "felizes até que a morte os separe". Não gosto de qualquer tipo de festa formal, do tipo formatura, casamento, noivado, etc. Acho tudo um saco. Isso sem contar que o primo estava casando pela segunda vez...

Mas o tempo passa, a gente amadurece. Aquela velha mania adolescente e rebelde de negar a família vai ficando para trás. A festa, mais do que o gosto do convidado, é um momento especial para quem convida. Recebi um abraço caloroso do noivo, que me fez perceber que havia tomado a decisão correta de ir.

Há um tempo, eu tinha o título do filme do italiano Mario Monicelli, "Parente é Serpente", quase como um mantra. Apesar de atualmente me render a um novo modo de pensar, ainda continuo acreditando que "felicidade é ter uma família calorosa e amorosa - a vários quilômetros de distância".

Por outro lado, vejo que o trabalho e as nossas relações profissionais nos obrigam a ter contatos próximos e constantes com colegas de trabalho, clientes, patrões, etc. Pessoas, muitas vezes, com as quais não temos a menor afinidade. E acabamos nos aproximando, seja por contingência ou falta de opção.

Então por que negar que há satisfação em reencontrar parentes? Pessoas com as quais, querendo ou não, temos histórias em comum. Histórias que têm mais verdade em seu interior que muitas de nossas relações mais frequentes. Veja bem , não prego reuniões familiares constantes e interações contínuas. Mas o contato esporádico pode ser bom. Talvez, no máximo, umas três vezes por ano.

E você, o que pensa disso?

21.10.04


Astros
A lua mingua e aguarda a chegada da boa nova. Os ímpetos diminuem e esperam conjunções de forças propícias. Há tanto a falar e existem palavras aprisionadas entre os dedos. Existem vivências e imagens claras e duradouras ao mesmo tempo. Os momentos estão em acordo com os movimentos das marés, ao sabor da lua.

As informações são vigorosas, são intensas, são muitas. Elas insistem em reverberar contra a parede de proteção que foi erigida. Há um mundo a construir e há de haver energia. O esforço perdido está novamente se concentrando em impulso. A lua mingua quase em lua nova: aproxima-se do sol para o casamento da emoção com a energia da luz.

Como todo ser iluminado, a lua reflete o dom da luz do sol. Que emana e empreende a luz pelo fogo celeste. Fogo é destruição, mas é luz. O sol traz alegria, mas arde e queima. As luminárias convivem em harmonia, em momentos únicos. A lua se divide em fases, rodando e contornando todas as vias do mundo.

20.10.04

Acalentado

No dia em que eu for rico não terei
mansões, carrões, piscina, apê na Europa:
com brilho e auê meu tipo não se dopa
nem paga aula de assunto que não sei.

Na mesa, porém, quero, como um rei,
jantar com antessopa e sobressopa:
toalha pode ser até de estopa,
mas sopa no meu prato será lei!

Não falo da sopinha trivial
que todo mundo toma no jantar,
tão rala que parece chá com sal:

Refiro-me às que lembro de tomar
no tempo em que a colher, descomunal,
no prato mergulhava, feito um mar...

Glauco Mattoso

19.10.04

Família vesus carreira
Em Menina dos Olhos (Jersey Girl, EUA, 2003), após a morte de sua esposa Gertrude (Jennifer Lopez), Ollie Trinke (Ben Affleck), relações públicas de sucesso na área musical, vê sua carreira declinar, pela necessidade de cuidar da filha recém-nascida Gertie. Eles então se mudam de Nova York para Nova Jersey, onde fica a casa do pai de Ollie.

Enquanto ele busca forças para seguir em frente, a garota se adapta ao novo lugar. O filme é dirigido por Kevin Smith (Procura-se Amy) e traz Liv Tyler (Armaggedon) e Jason Biggs (American Pie) no elenco.

O filme inicia em tom de drama, passa pela comédia e finaliza novamente no drama, para retratar a relação de pai e filha. Mostra basicamente ganhos e perdas de abrir mão da carreira profissional para dedicação quase que integral à família. Escrito pelo diretor e inspirado em sua experiência real como pai, o roteiro é convincente e tocante, sem os rotineiros desfechos de vida arrumada, típicos dos filmes americanos. Destaque para a atuação da garotinha Raquel Castro, melhor do que o galã e canastrão Ben Affleck.

18.10.04

Dança engajada

A grande atração do final de semana foi o III Ateliê de Coreógrafos Brasileiros, que acontece até quarta-feira, dia 20. O Teatro Castro Alves esteve lotado, a preço acessível. Dez reais a inteira e cinco a meia.

No sábado as atrações foram "Construindo Janice", de Kleber Damasco, de Goiás, e "Samba do Crioulo Doido", de Luiz de Abreu, de São Paulo.

"Construindo Janice" é um trabalho sutil e delicado, com bailarinas interagindo com imagens provenientes de um retroprojetor. Isso mesmo, um retroprojetor. Esse é talvez o maior mérito: conseguir proporcionar tantas e belas interações de dança e imagens a partir de um equipamento tão tosco e sem graça. Um desenhista fica traçando linhas e projetando desenhos, à medida que as bailarinas executam os seus movimentos. Um resultado muito agradável de ser visto, ainda que as imagens acabem roubando um pouco da cena, em detrimento da dança.

O "Samba do Crioulo Doido" fez grande sucesso. Dez bailarinos, nove homens e uma mulher, negros e completamente nus, fazem um espetáculo ousado, crítico e quase panfletário sobre a condição do negro na cultura brasileira. Em um cenário de painel de bandeiras brasileiras, os bailarinos começam a se movimentar sob a batida forte de Elza Soares, na música que diz que "a carne mais barata do mercado é a carne negra". No final da primeira coreografia, os bailarinos ficam enfileirados, totalmente iluminados na beira do palco, como em uma vitrine.

Fica patente a crítica ao papel de objeto sexual que os negros exercem. Os bailarinos usam botas prateadas e altíssimas, daquelas utilizadas pelas mulatas e negras sambistas. Imagem marcante e consagrada internacionalmente, pela veiculação do Carnaval carioca nas TVs do mundo.

Em Cabaré da Raça, peça encenada pelo Bando de Teatro Olodum, é utilizado um expediente semelhante: homens negros aparecem nus para enxovalhar a mítica da sexualidade da raça negra.

Na parte final da coreografia, os bailarinos vestem um traje que tem forma e desenho de bandeira brasileira - ou será a bandeira em formato de traje? O público aplaudiu de pé e com animação.

17.10.04

Decadência com sensibilidade
Um Minuto de Silêncio é o nome da peça que esteve em cartaz no Teatro Sesc/Senac Pelourinho este final de semana. Encenada pelo grupo cearense Teatro Novo, mostra o encontro de um entregador de remédios com uma ex-prostituta louca e decadente, que ainda aguarda pela chegada do seu príncipe encantado. Ela está prestes a ser despejada, pois o prédio onde mora será implodido. O entregador de remédios pode ser a sua salvação.

Anunciada como uma comédia, a peça ai tomando ares de drama, ao mostrar a dor da prostituta, que de inicio ataca o entregador, aprisionando-o. A veia cômica e escrachada inicial então dá lugar à densidade dramática, à medida que o assédio sexual da prostituta transforma-se em confissão e desabafo. Tudo sob um olhar carinhoso do autor sobre os personagens.

A prostituta vai relembrando o passado e o glamour dos bordéis, com a nostalgia de uma época em que eram frequentados por políticos e pessoas importantes. Ela revela a sua paixão por aquele que lhe prometeu amor eterno, mas desapareceu, o que a fez enlouquecer.

Uma história urbana, doce e pungente, possível em qualquer grande cidade. Texto inspirado em fato vivenciado pelo autor, Aldo Marcozzi. Bom trabalho dos atores Ana Marlene e Thales Valério. Direção interessante, com a inserção de bailarinos e atores locais, em fantasias de Carnaval, que trazem magia e energia à cena.

Pena que a peça é curtinha - uma hora somente. A peça veio a Salvador por intermédio da Caravana Funarte e passa por Feira de Santana, Caruaru e Recife.

13.10.04

Dogma da sacanagem

O festejado diretor dinamarquês Lars von Trier, ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes por Dançando no Escuro, agora ataca como produtor de fitas pornográficas. Segundo o site E-pipoca há até mandamentos para a nova modalidade do "Dogma". São eles: emoção e sensualidade prioritárias; roteiro verossímil; proibição de cenas de sexo gratuias em benefício de um incremento sutil do desejo; e a rejeição de toda violência.

O Dogma original causou uma revolução no cinema europeu nos anos 90: foi um movimento de cineastas que pregavam cenários simples, poucos recursos financeiros, poucas e tremulantes câmeras, boas histórias. Cinema simples e eficaz. Trier foi um dos expoentes desse movimento. Foi quem ficou mais famoso e hoje produz filmes com estrelas e recursos de Hollywood, ainda que continuem sendo filmes pouco fáceis para o grande público.

Não deixa de ser interessante ver um diretor tido com "cult" enveredar por uma área tão pouco reconhecida pela qualidade, ainda que de grande poderio financeiro. Enquanto o cinema americano movimenta 30 bilhões de dólares por ano, a indústria pornô (vídeos e DVDs) gira em torno dos 10 bilhões. Não é pouca coisa.

O erotismo sempre foi inspirador das artes plásticas e da literatura. Talvez na indústria do cinema, dominada pelos Estados Unidos, cuja sociedade tem um componente de puritanismo muito forte, haja pouca abordagem de sexualidade nos filmes. É um paradoxo, já que existe uma indústria pornô tão potente, convivendo lado a lado.

Alguns cineastas, uns mais outros menos famosos, já fizeram tentativas de filmes pornôs como obras de arte. Esse parece ser agora o objetivo do dinamarquês. Será que ele consegue? Mais do que uma proposta séria, o novo Dogma parece mais uma jogada de marketing.

12.10.04

Kill Bill Vol.2

Desta vez, Quentin Tarantino carrega as tintas na carga dramática. As cenas de lutas e violência, mescladas a humor nonsense e quase sempre referencial, continuam presentes, mas dividem o espaço com as lágrimas e os dramas familiares e de relacionamentos. Foi o caminho encontrado por Tarantino, diretor e roteirista, para explicar e fechar a história da Noiva que vai se vingar do ex-noivo, Bill, e de seus seguidores.

Talvez não houvesse mesmo outro jeito para concluir uma história tão amalucada. O Volume 2 é mais real, se é que isso é possível em filme de Tarantino. Os duelos de espada e as artes marciais continuam, mas se perde um pouco daquela mágica da primeira parte, em que as loucuras das lutas em estilo oriental e as músicas que as embalam fazem a delícia da narrativa.

Ainda assim as referências são marcantes. A aproximação rápida da câmera, no estilo dos filmes de kung-fu. A vaidade do mestre chinês e sua longa barba, que provoca risos. O clima de faroeste. As músicas de seriados antigos de TV. Até nos créditos finais, em fontes de estilo antigo, sobre imagens preto-e-branco. Uma salada bem temperada. É esse um dos grandes talentos do cineasta: misturar tantas referências e estilos cinematográficos e conseguir um bom resultado.

11.10.04

Jazz e risos

Igual a Tudo na Vida (Anything Else, EUA, 2003), o mais novo trabalho de Woody Allen lançado no Brasil - há outro filme mais recente, produzido em 2004 - , volta a abordar temas que compõem a marca registrada do cineasta: o jazz, a vida em Nova York e personagens neuróticos.

Um escritor iniciante, Jerry Falks (Jason Biggs, de American Pie), tem rotina e percepção de mundo alteradas quando se apaixona por Amanda (Christina Ricci, de Monster, O Oposto do Sexo, A Família Adams), excêntrica e imprevisível. Woody Allen atua como David Dobel, também escritor, judeu e neurótico, que inicia amizade e passa a aconselhar Arthur.

Os momentos musicais são marcantes. A participação da cantora canadense de jazz Diana Krall, ao piano, em uma boate. Billie Hollyday embalando quase todo o filme. Até Stockard Channing ao piano. Para quem não se lembra, ela cantava em Grease, era uma das inimigas de Sandy.

Desta vez, Allen, diretor e roteirista, parece não ver soluções para os conflitos de relacionamentos existentes entre os nova-iorquinos. O melhor seria mesmo sair de lá para tentar a vida em outro lugar, como na pujante Hollywood?

Jason Biggs não convence o suficiente como o jovem e neurótico escritor. A imagem dele ainda está muito associada ao adolescente cabeça-de-vento - e tarado - da comédia American Pie. A escolha do ator foi inclusive alvo de críticas. Já Christina Ricci vem se consagrando em papéis de amalucada.

O humor é ponto forte, conduzido por personagens neuróticos e seus psicanalistas que mais atrapalham do que ajudam, pelo menos na visão do cineasta. Diversão inteligente, diálogos cheios de referências na literatura e música - e de ironias em cima disso. Um das mais divertidos trabalhos de Woody Allen em sua produção recente.

10.10.04

Que vem do mar
Quando o Mercado Municipal de Frutos do Mar, em Salvador, foi inaugurado, houve muita polêmica. Os tradicionais vendedores de peixes e mariscos na Feira de São Joaquim protestaram, e com vontade. Afinal, teriam que pagar altas taxas à Prefeitura para alugar e utilizar os boxes no novo local.

Difícil para os comerciantes, bom para os consumidores. Estacionamento fácil, preços em conta e boa oferta de produtos. Conforto na compra. O ambiente é limpo, com azulejos brancos e azuis. Cada box possui pia.

Outro dia, fiz a festa do mar: badejo, atum, cavala, camarão e polvo. Encontra-se tudo e mais um pouco por lá, a preços bem melhores que nos supermercados.

Alguns boxes estão vazios. É preciso ter volume de vendas para garantir os lucros dos comerciantes. Com o perdão do trocadilho, não é para peixe pequeno.

Sem trocadilho, tinha cada peixão... Tinha atum enorme, gigantesco, com cara de quem veio do alto mar, de lugares distantes, contando histórias de outros mundos. Parecia peixe-espada de filme. Tinha camarão-pistola do tamanho de um palmo. Tinha aratu, siri-mole e lula. Tinha chumbinho e sururu. Tinha cheiro de peixe e tinha maresia que trazia lembrança da praia. As batidas de martelos ecoavam por todos os lados: eram as postas pulando para as mãos dos moquequeiros de plantão.

7.10.04

Riqueza

Sinto os tesouros se acumulando para o dia em que poderão ser utilizados. É preciso e precioso juntar as pérolas da existência como se fossem as últimas encontradas no baú do mundo. Tenho que me orgulhar delas. Olhá-las e admirá-las. Elas me pertencem, podem não significar nada para o mundo, mas são as minhas pequenas riquezas. As minhas vestes preciosas, delírios de riqueza e pobreza.

Preciso guardar as pérolas como se fossem relíquias de civilização que ficou sem registro. De um novo mundo que naufragou. As pérolas irão ressurgir como pequenas fontes de luz branca, para conduzem ao caminho adequado. As pérolas serão as estrelas de um céu escuro.

As pérolas se transformarão em palavras, que serão bondosas. As palavras não serão usadas para ferir. As palavras serão utilizadas como forças ocultas que semearão a humanidade. As palavras deverão servir para nutrir as forças da civilização cada vez mais esquecida.

As palavras tomarão forma e serão mais fortes do que o raciocínio lógico. As palavras continuarão contidas nos livros e nos gestos. As palavras serão masculinas e femininas. As palavras vão andar com as suas pernas e braços. Em breve, as palavras saberão o que dizer. Serão como pérolas mais que brilhantes. Serão ofuscantes na qualidade e na beleza.

6.10.04

Regime

Maioneses, cremes e queijos. Carnes, patês, mousses e recheios cremosos: caiam fora! Get out! O colesterol anda acima do permitido. Volto urgente à alimentação leve que sempre tive. Valham-me alfaces, rúculas, espinafres e todo o exército de vegetais crus. O máximo permitido será um peixinho sem gordura. Vale salmão.

Ai, ai. Ponha menos responsabilidade na comilança, rapaz. O problema foi a falta, por um bom período, de exercícios físicos. O máximo permitido era a digitação no computador e o lento passar de páginas de algum livro - às vezes de gastronomia, pecado maior, que dá fome só de olhar e ler. A bicicleta ergométrica andava esquecida. As caminhadas na agradável praia de Amaralina, impossibilitadas pelas chuvas do inverno. Agora não há mais desculpas.

Os mariscos, as delícias do mar, infelizmente tem colesterol altíssimo. Camarão? É um tirano. Da comida vegetariana, que sempre fui adepto, enjoei do cardápio, depois de tanta utilização.

Também, fui achar de fazer exames justamente na época que estou cozinhando e passando muito tempo em casa. Aí, na hora de fazer a comida, é um toque de creme aqui, manteiga ali, leite de coco acolá. Devia ter deixado para fazer os exames em minha rotina normal, quando almoço pelo menos três vezes por semana em restaurante vegetariano. Oba! Não tinha pensado nisso. O cenário não é tão feio assim. Escrever ajuda a desanuviar as idéias. Volta, camarão, vem correndo para o seu lar: o meu panelão!

5.10.04

Fermentando

O Festa dos Sentido tem recebido várias visitas procurando informações sobre o "fermento de Jerusalém" ou a receita do "pão de Padre Marcelo Rossi", que na verdade é um bolo, e muito bom. O post sobre o assunto foi publicado no dia 19.09.

Soube que o Padre Marcelo Rossi disse em entrevista no rádio que não tem nada a ver com o assunto, que não espalhou receita nenhuma. O que já era esperado. Trata-se de mais uma lenda urbana.

O interessante na corrente é o fermento fresco, que deve ser passado de uma pessoa para outra. Segundo o texto explicativo, o original veio de Jerusalém. É replicado com a adição de leite, açúcar e farinha para dar continuidade à corrente. É interessante ver as bolhas que emanam e aumentam o volume do fermento. E não precisa de refrigeração.

Outra coisa interessante na receita é a adição de uma colher de sopa de fermento químico de bolo - composto basicamente de bicarbonato de sódio e outros sais -, quantidade suficiente para fazer um bolo normal, sem o tal fermento do Oriente.

Uma leitora ganhou o fermento e questionou se não azedaria, depois de tanta multiplicação e já que não precisa de refrigeração.

A fermentação natural se processa pela ação de levedura natural e bactérias de ácido lático sobre a farinha. Convivendo harmoniosamente e gerando os gases, os alcoóis e os ácidos que conferem ao pão o gosto e a textura atraente.

Nas origens, antes do fermento comprado em supermercado, a levedura era obtida durante a fermentação de uvas, ou da própria farinha de trigo integral. As informações são de Jeffrey Steingarten, crítico de gastronomia da Vogue, no livro "O Homem que Comeu de Tudo".

Acredito que o fermento "de Jerusalém" não deve esperar muito tempo sem ser usado, pois aí os ácidos e alcoóís formados vão agir demais no sabor, inutilizando a massa. Para se precaver disso, basta confiar no próprio nariz e testar o cheiro, que deverá ser agradável. Caso contrário, o destino é o lixo.

4.10.04

Vingança americana
Vi Dogville em DVD. Cento e setenta minutos de filme, quase peça teatral, sem cenários, só com marcações no chão e a eventual entrada de veículos no, digamos, palco. O filme passou no cinema e fui adiando, adiando, sem coragem de enfrentar a longa duração. Em casa, assisti em duas partes. Não consegui ver todo de uma vez.

O diretor Lars von Trier consegue criar um clima bem parecido com Dançando no Escuro, com Bjork. As personagens de Nicole Kidman (Dogville) e Bjork (Dançando no Escuro), que agora me escapam os nomes, são subjulgadas, quase escravizadas, por outras pessoas e não conseguem reagir à violência. O mérito do diretor, nos dois filmes, é criar o clima angustiante, quase insuportável.

O ritmo vagaroso de Dogville possibilita acompanhar as reações e as mudanças de comportamento, em uma velocidade que se aproxima da que acontece na vida real.

Se a proposta era uma crítica incisiva à sociedade americana, como foi divulgado, o filme não atingiu seu objetivo. A escravização de pessoas ou povos fragilizados, não é mérito da sociedade americana. Infelizmente, faz parte da natureza humana, das nações européias colonizadoras às tribos africanas. Atualmente englobando as nações credoras que emprestam dinheiro e cobram juros altíssimos aos países pobres por intermédio do FMI.

A reviravolta em Dogville, no entanto, reitera o comportamento de vingança que faz parte da característica bélica da sociedade americana. Nisso, o cinema de Hollywood está cheio de exemplos, dos filmes policiais aos de guerra, passando por Charles Bronson, Stallone e Schwarzenegger.

Novidade teria sido se fosse incorporada à narrativa uma palavrinha que parece não fazer parte do vocabulário americano: perdão. Mas aí estaria configurada a irrealidade. Talvez a lição do filme seja a de que eles não perdoam nem a si mesmos.

2.10.04

Sobre camarões escondidos e ilhados

Não posso falar pelo resto do país, mas os consumidores baianos parecem estar voltando a consumir em restaurantes à la carte. Mesmo que sejam daqueles que servem só alguns poucos pratos, que ficam semiprontos, em que o consumidor só escolhe os acompanhamentos.

Os restaurantes de refeições fast food estão se proliferando. No shopping Iguatemi, em Salvador, há quatro dessa categoria. Enfileirados, servindo pratos com um certo toque de refinamento. Camarões, filés, frangos, saladas, peixes e massas em diferentes versões.

Os preços não são exorbitantes. Ao menos quando comparados com os dos restaurantes a quilo. As porções são generosas.O preço parece ser um dos motivos por que esses locais de prato-pronto-feito-na-hora estão tendo tanto sucesso.

Não consigo conceber por que certos restaurantes, principalmente vegetarianos, precisam ter o quilo a quase vinte e quatro reais. Ainda que utilizem alguns ingredientes caros ( cogumelos, temperos importados, tofu, etc.) não há justificativa para o preço abusivo. As comidas são feitas de uma vez só, a maior parte dos ingredientes - os vegetais - são mais baratos que as carnes. O resultado é que é possível pedir prato pronto, feito na hora, por preço mais em conta, quando se pensa na quantidade de comida.

Hoje experimentei um escondidinho de camarão, em um dos restaurantes fast food do shopping. Camarões com cebolas, tomates, leite de coco e requeijão cremoso, recoberto por um purê de aipim. Não estava de todo mal, mas não era nenhuma maravilha. Parecia que tinham misturado o camarão aferventado com molho e temperos e jogaram o purê de aipim por cima. O que provavelmente foi feito. Faltava incorporação do sabor ao camarão. Faltava um toque manteiga no purê de aipim.

Em um restaurante sertanejo de Salvador, há um prato chamado "O Sertão vai Virar Mar", que é o camarão ensopado, com leite de coco, rodeado de purê de aipim. A mesma receita do escondidinho, com outra arrumação do prato. O camarão fica no centro, ilhado, esperado para ser salvo por algum garfo providencial.

Há um tempo, a jornalista e mestra Helô Sampaio publicou a receita no jornal A Tarde. Na época ela fazia a coluna Comes e Bebes. Preparei o prato e, modéstia à parte, ficou excepcional. Melhor do que aquele que comi no shopping.