14.12.10

Na falta de mendigos e vendedores de balinhas, os punks

Os punks sao figurinhas fáceis em Montréal. Vindos de todos os cantos do Canadá, às vezes do outro lado do país, do Oceano Pacífico, lá vem eles para passar o verao na metrópole francófona e curtir os festivais gratuitos de música e teatro.

Eles sao facilmente reconhecíveis. Tatuagens, piercings, cabelos coloridos ou de corte moicano, coturnos, roupas pretas ou de estampa militar, sempre rasgadas. Correntes, couro e tachas em profusao. Quase sempre acompanhados dos seus cachorros.

Mudando de cenário para Toronto, eu tinha acabado de pegar um ônibus. Fiquei feliz de encontrar assentos vagos, o que nao é nem tao difícil de acontecer. Escolhi rápido um local e me sentei. Eu estava cansado, saindo do trabalho.

Nao tive tempo nem de esperar a respiraçao normalizar, quando senti um cheiro forte. Olhei para a o outro lado, em direçao à outra fileira de assentos e vi um punk bem jovem, com boné, piercings em todos os apêndices da cara e cabelos moicanos tingidos de amarelo-ouro. Ao lado dele um filhote de cachorro dormia tranquilamente. Cansado como eu estava, olhei para o bicho (o cachorro!) com uma ponta de inveja. Fiquei imaginando de quem vinha o cheiro, do punk ou do cachorro. Ou dos dois, depois de tao longa e próxima convivência.

Olhei mais à frente e em outro banco também havia um punk, também de boné, cabelo azul e infinitos piercings. E outro cachorrinho, este mais inquieto. O dono-punk tratava de acalmá-lo para nao incomodar as vizinhas do banco da frente, uma indiana e uma chinesa, ou que talvez fosse uma filipina. A diferença é que os filipinos têm a pele mais bronzeada que os chineses.

No desejo pela brincadeira, o cachorro balançava o rabo para os lados e eu conseguia ver a mistura entre os pelos do bicho e as madeixas das orientais, que, tendo absorvido calma e fleuma canadenses, eram incapazes de reclamar, apenas viravam o pescoço e olhavam com leve reprovaçao.

O dono foi fazendo carinho e o cachorro foi acalmando. Os punks também amam. Os seus cachorros.

Crianças e cachorros no Canadá sao os mais dóceis que já vi. As maes circulam por todos os lados, empurrando os carrinhos com as suas crias e estas quase nao choram. Já os cachorros quase nao latem. Seria por causa do frio? Será que se os cachorros canadenses fossem para o calor do Brasil continuariam tao silenciosos?

Pois bem, o cheiro forte continuava. De onde viria? Os cachorros tinham pelo curto e brilhante, indicando bom tratamento. A nhaca parecia vir mesmo dos outsiders. Jovens de pele e olhos claros, canadenses de longa data, possivelmente consumidores de drogas pesadas e defensores de um estilo de vida sem amarras.

Aí eu lembrei da Bahia. Aqui nada de vendedores de balinha, nada de mendigos, de deficientes, nem daqueles performers que vao para a frente do ônibus contar a tragédia das suas vidas nos minutos entre duas paradas e pedir ajuda financeira. Tipo: ''Eu poderia estar roubando, eu poderia estar matando, mas estou aqui pedindo ajuda a vocês...'' Os dramas sao diferentes, mas sao dramas.

Gostaria de estar com a máquina fotográfica para registrar o momento. Mas eu acho que nao arriscaria. Tenho amor à pele, melhor mesmo nao fazer isso. Nao quero saber de punk irado correndo atrás de mim. Tomando satisfaçao, querendo saber se eu o havia confundido com alguma atraçao turística local, talvez algum personagem do Cirque du Soleil.