21.1.11

Para ler um português

O senhor tinha os cabelos totalmente brancos, vestia um casaco de la e eu me dei conta que ele lia um livro de José Saramago durante a curta viagem de ônibus. É uma curiosidade que sempre tenho, confesso agora. Ou me dou conta disso: fico tentando descobrir em que língua lêem as pessoas no transporte público do Canadá. Eu fico tentando achar alguma palavra familiar, um título conhecido, o nome de um autor, entre os livros corajosamente empunhados entre as paradas e as partidas de ônibus, metrô ou bonde - sim, Toronto tem bondes. Claro que o inglês predomina, mas às vezes tem francês, espanhol, russo, línguas orientais e até português! Hoje eu achei alguém lendo em português.

O ônibus estava lotado, em consequência do inverno. Os ciclistas recolheram os seus camelos e poucos pedestres se arriscam a caminhar. Para uma pequena distância de três quarteiroes, as pessoas tomam transporte público. Ninguém quer andar na calçada cheia de neve, com o vento açoitando na pele, dando a impressao que o frio chega a -15 graus, mesmo que o termômetro indique ''apenas'' -8. Nesse clima, míseros dez minutos de espera em um ponto de ônibus sao uma eternidade.

Além do aumento considerável do números de passageiros, estes também aumentam de volume. E nao estou falando do tradicional aumento de massa corpórea que resulta das deliciosas massas, sopas e cremes exigidos pelo inverno. Falo dos imensos casacos que aumentam a circunferência corporal e fazem todos semelhantes a um ''bonhomme'' de neve. Entao fica um aperto danado no ônibus. E todo mundo torcendo que o inverno acabe logo, para poder voltar a caminhar ou ir ao trabalho de bicicleta. Sim, esse sonho é possível no Canadá e suas cidades cheias de ciclovias.

No ônibus cheio, que me fez lembrar os melhores momentos da linha Nazaré-Federaçao, em Salvador, às 6 horas da tarde, com todo o seu esplendor de apertos e cheiros, o senhor passava os olhos pelas longas sentenças de Saramago.

Fiquei com saudade e me deu muita vontade de voltar ler em português. Nada de notícias rápidas e da leitura desconfortável na internet. E sim dizer sim ao prazer de ler no suave aconchego da língua materna, sem a necessidade (ou a precipitaçao) de ir toda hora ao dicionário para aprender o significado de uma nova palavra, seja em inglês ou francês. Se bem que, ao ler Saramago, o dicionário sempre ajuda para aumentar o entendimento entre Brasil e Portugal.

O senhor viu o seu ponto se aproximar, fechou as letras de Saramago e colocou o livro dentro da pasta. Um senhor português idoso e distinto. Poderia ser brasileiro, mas os portugueses estao há muito tempo no Canadá, enquanto os brasileiros sao mais recentes, no máximo há vinte e cinco anos, entao sao mais jovens. O senhor pedia licença para sair do ônibus com um sorriso no rosto. Pedia gentilmente para abrir espaço entre os passageiros amontoados e acolchoados pelos grossos casacos de frio intenso. Ele devia estar feliz em poder fruir da imaginaçao de Saramago.

Lembrei que ainda tenho o moçambicano Mia Couto antes de voltar a qualquer autor em português. Possivelmente ele será a minha próxima parada literária. E lembrei que, infelizmente, há poucos - e disputados - exemplares nas bibiotecas, tanto de Montréal como de Toronto. Acho que só vou ter esse privilégio na próxima mala de viagem que trouxer do Brasil.

Desci no mesmo ponto em que o provável lusitano desceu, na Queen Street. Fui em direçao ao trabalho, aproveitando o caminho aberto aberto pelo português, para conseguir sair do ônibus. Fui seguindo o caminho das Indias.

1 comment:

Vania Rebelo said...

Querido amigo,

no último domingo me deliciei com o documentário "José e Pilar" que mostra a relação entre José Saramago e sua esposa, a jornalista Pilar Del Rio, através do cotidiano do casal. Sai de lá direto para a livraria, não encontrei "A Viagem de um elefante" , livro muito citado durante o filme, mas achei "As Intermitências da Morte". Mia Couto foi amor à primeira leitura (A Varanda do Frangipani) e agora estou de paquera com José Eduardo Agualusa, também africano, porém de Angola. O livro dele que estou finalizando chama-se "A Estação das Chuvas" e é bem denso, mas nos prende ate o final. Pois é, também ando me reapaixonando pela minha língua, e me veio um desejo de quem sabe...voltar a Lisboa com com este viés...
Beijos daqui, do calorzinho do Planalto Central.