Os punks sao figurinhas fáceis em Montréal. Vindos de todos os cantos do Canadá, às vezes do outro lado do país, do Oceano Pacífico, lá vem eles para passar o verao na metrópole francófona e curtir os festivais gratuitos de música e teatro.
Eles sao facilmente reconhecíveis. Tatuagens, piercings, cabelos coloridos ou de corte moicano, coturnos, roupas pretas ou de estampa militar, sempre rasgadas. Correntes, couro e tachas em profusao. Quase sempre acompanhados dos seus cachorros.
Mudando de cenário para Toronto, eu tinha acabado de pegar um ônibus. Fiquei feliz de encontrar assentos vagos, o que nao é nem tao difícil de acontecer. Escolhi rápido um local e me sentei. Eu estava cansado, saindo do trabalho.
Nao tive tempo nem de esperar a respiraçao normalizar, quando senti um cheiro forte. Olhei para a o outro lado, em direçao à outra fileira de assentos e vi um punk bem jovem, com boné, piercings em todos os apêndices da cara e cabelos moicanos tingidos de amarelo-ouro. Ao lado dele um filhote de cachorro dormia tranquilamente. Cansado como eu estava, olhei para o bicho (o cachorro!) com uma ponta de inveja. Fiquei imaginando de quem vinha o cheiro, do punk ou do cachorro. Ou dos dois, depois de tao longa e próxima convivência.
Olhei mais à frente e em outro banco também havia um punk, também de boné, cabelo azul e infinitos piercings. E outro cachorrinho, este mais inquieto. O dono-punk tratava de acalmá-lo para nao incomodar as vizinhas do banco da frente, uma indiana e uma chinesa, ou que talvez fosse uma filipina. A diferença é que os filipinos têm a pele mais bronzeada que os chineses.
No desejo pela brincadeira, o cachorro balançava o rabo para os lados e eu conseguia ver a mistura entre os pelos do bicho e as madeixas das orientais, que, tendo absorvido calma e fleuma canadenses, eram incapazes de reclamar, apenas viravam o pescoço e olhavam com leve reprovaçao.
O dono foi fazendo carinho e o cachorro foi acalmando. Os punks também amam. Os seus cachorros.
Crianças e cachorros no Canadá sao os mais dóceis que já vi. As maes circulam por todos os lados, empurrando os carrinhos com as suas crias e estas quase nao choram. Já os cachorros quase nao latem. Seria por causa do frio? Será que se os cachorros canadenses fossem para o calor do Brasil continuariam tao silenciosos?
Pois bem, o cheiro forte continuava. De onde viria? Os cachorros tinham pelo curto e brilhante, indicando bom tratamento. A nhaca parecia vir mesmo dos outsiders. Jovens de pele e olhos claros, canadenses de longa data, possivelmente consumidores de drogas pesadas e defensores de um estilo de vida sem amarras.
Aí eu lembrei da Bahia. Aqui nada de vendedores de balinha, nada de mendigos, de deficientes, nem daqueles performers que vao para a frente do ônibus contar a tragédia das suas vidas nos minutos entre duas paradas e pedir ajuda financeira. Tipo: ''Eu poderia estar roubando, eu poderia estar matando, mas estou aqui pedindo ajuda a vocês...'' Os dramas sao diferentes, mas sao dramas.
Gostaria de estar com a máquina fotográfica para registrar o momento. Mas eu acho que nao arriscaria. Tenho amor à pele, melhor mesmo nao fazer isso. Nao quero saber de punk irado correndo atrás de mim. Tomando satisfaçao, querendo saber se eu o havia confundido com alguma atraçao turística local, talvez algum personagem do Cirque du Soleil.
Crônicas e comentários de Danilo Menezes. Jornalista brasileiro da Bahia, atualmente morando em Toronto, Ontario, Canada.
14.12.10
31.10.10
Dia das Bruxas
Halloween, dia das bruxas. Em Toronto as festividades sao intensas. As casas sao decoradas e as festas acontecem por todos os cantos. As pessoas circulam fantasiadas nas ruas e no transporte público. A data é 31 de outubro, mas bem antes disso já tem canadense se exibindo com máscara, peruca, fantasia ou pintura no rosto. É muito engaçado ver gente de terno e gravata, indo ou voltando do trabalho, ao lado de múmias, bruxas, diabos e o escambau. Uma antiga moradora de Toronto me disse que é um fenômeno recente, de uns dez anos para cá. A festa tem mais tradiçao nos Estados Unidos.
As indústrias de doces faturam alto nesta época. A criatividade nao tem fim. Bombons, pirulitos e jujubas viram caveiras, gatos pretos, esqueletos, olhos de monstros, chapéus de bruxa. As delícias sao oferecidas às crianças para que nao façam nenhuma travessura. Entao, ao saborear um pacote de guloseimas monstruosas, incluindo bala de olho ensanguentado e jujuba de gato preto, lembrei do meu primeiro Halloween.
Acho que eu tinha uns treze anos. A escola de inglês em que eu estudava organizou uma bela festa, que movimentou a cidade. Havia um mapa indicando as casas dos alunos participantes. Na porta de cada uma delas havia um jack-o'-lantern, aquela abóbora recortada com uma vela acesa dentro.
A gente ia passando de carro pelas casas. Estávamos todos fantasiados. Eu saí vestido de fantasma. Eram uns três ou quatro amigos, todos na mesma faixa de idade. Um deles nao era nem aluno da escola. Era uma cidade pequena, naquela época nao havia fiscalizaçao rígida e, aos catorze anos, os moleques viviam de carro para cima e para baixo. A gente localizava as casas e chegava falando 'trick or treat' para encher de bombons a sacola de tecido que a escola havia nos dado.
Acho que nunca comi tantos doces na vida.
As indústrias de doces faturam alto nesta época. A criatividade nao tem fim. Bombons, pirulitos e jujubas viram caveiras, gatos pretos, esqueletos, olhos de monstros, chapéus de bruxa. As delícias sao oferecidas às crianças para que nao façam nenhuma travessura. Entao, ao saborear um pacote de guloseimas monstruosas, incluindo bala de olho ensanguentado e jujuba de gato preto, lembrei do meu primeiro Halloween.
Acho que eu tinha uns treze anos. A escola de inglês em que eu estudava organizou uma bela festa, que movimentou a cidade. Havia um mapa indicando as casas dos alunos participantes. Na porta de cada uma delas havia um jack-o'-lantern, aquela abóbora recortada com uma vela acesa dentro.
A gente ia passando de carro pelas casas. Estávamos todos fantasiados. Eu saí vestido de fantasma. Eram uns três ou quatro amigos, todos na mesma faixa de idade. Um deles nao era nem aluno da escola. Era uma cidade pequena, naquela época nao havia fiscalizaçao rígida e, aos catorze anos, os moleques viviam de carro para cima e para baixo. A gente localizava as casas e chegava falando 'trick or treat' para encher de bombons a sacola de tecido que a escola havia nos dado.
Acho que nunca comi tantos doces na vida.
5.10.10
Toronto, personagem secundário
Eu estava tranquilamente vendo Chloé, com Julianne Moore, Liam Neeson e Amanda Seyfried. Achei as locaçoes bem bonitas, com neve, ruas nao muito largas e placas de sinalizaçao em um estilo retrô. Depois achei interessante que as personagens marcaram um encontro em um bar chamado The Rivoli. É o mesmo nome do bar em que acontece o encontro Toronto Babel Language, do pessoal do Couchsurfing. Aí eu pensei, que coincidência, um café ou bar nos EUA (pelo menos no filme!) também chamado Rivoli. E ainda fiquei imaginando que o nome originalmente devia ser alguma praça, fonte ou local famoso na Itália, pois Rivoli me parecia algo italiano.
Quando as personagens se encontraram, tomei um susto quando, pela janela do bar/café, vi um streetcar (bonde) vermelho passar. Aí a ficha caiu. Gente, é mesmo Toronto no filme. Nao fizeram nem questao de mudar o nome do bar onde eventualmente vou nas quartas-feiras, localizado na Queen Street.
A partir daí uma série de locais conhecidos desfilam na tela. Allan Gardens, Royal Ontario Museum, Museu de Arte Moderna, um campo de hóquei.
Cloe é o remake de Nathalie, filme francês de 2002, com Fanny Ardant, Gérard Dépadieu e Emmanuelle Béart. Bom drama e bom para quem quiser ver Toronto no cinema, além da sempre talentosa Julianne Moore.
10.9.10
Música para lembrar
Talvez a coisa mais intensa, mais profunda, mais emocionante, mais gratificante de estar vivendo em inglês é poder ouvir e entender - se nao completamente, aos menos grandes pedaços - as cançoes americanas e inglesas que marcaram momentos de história pessoal. :-)))
1.9.10
Calor
Três dias de temperatura acima dos 30 graus sao considerados como uma ''onda de calor'' no Canadá. Para quem é acostumado com o clima brasileiro, isso nao é lá grande coisa. O problema é que, mais adaptados ao clima frio, alguns prédios e locais fechados nao têm boa ventilaçao, entao fica um calor insuportável. Mas que dura só três ou quatro dias. Felizmente.
31.5.10
Fluindo
A noite caminha sem pensar no que poderia esperá-la. Os sons passaram, percebo os movimentos, as luzes, as cores. Com pessoas troquei palavras, entendi o gestual. A cidade ainda fascina, com seus gestos, seus enigmas, suas respostas. As chegadas e as partidas estão incluídas. Há palavras que não entendi. Há histórias dolorosas, que foram ditas em liguagem indecifrável. Há carinho e alguns afagos. Há compreensão e há desentendimento. Há luzes que embelezam a dança, de forma colorida e mágica. Existem olhos que tudo captam. Existem registros que ficarão para o dia seguinte. Existe a permanência e a lembrança na imagem. Há olhos que brilham de tristeza, olhos que querem chorar. Há olhos que explodem de alegria. Há mentes e corpos que só querem viver a sua juventude. Há uma alegria a resgatar. Há opções que precisam se definir. Há compreensão e há cumplicidade. Existem repetições que se perpetuam, que marcaram o tempo, que foram importantes, que superaram barreiras. Há desespero, há esperança ao mesmo tempo. Existe contradição, como em qualquer mente que se divide entre o querer, o poder e o escolher.
20.5.10
Esperando
Ouço ''Say it right'' de Nelly Furtado. A música toca no rádio durante o horário de trabalho. Já acabei de fazer as minhas atividades, mas ainda exite tempo a vencer. Finjo que estou ocupado. A música me lembra um tempo que estive a esperar. Agora novamente é tempo de espera. É época de fechamento de ciclo. Sigo fechando portas e janelas, esvaziando prateleiras, apertando os pontos, riscando as páginas em branco, costurando o que está em pedaços separados. É tempo de mudança. Há alegria e há tristeza, disfarçada de nostalgia. Nostalgia? Nao sei de que. Vou trocar de língua. Mais uma vez. Mudar de língua é mudar de país, é descobrir uma nova pátria. Vou resgatar algo que sempre esteve em mim, que faz parte da minha história, que me toca profundamente, que me diz muito. Assim como a música da cantora canadense.
27.4.10
Andanças
Dia de sol, passeio pelo Parc Lafontaine. Fotos em preto e branco, como se fossem registro do que está por se tornar passado. Muita gente estendida nos gramados, os personagens se multiplicam. Os loucos itinerantes estão lá, com suas guitarras desafinadas. As bicicletas se espalham por todos os espaços. A cidade é realmente um vila histórica de ciclistas. Fotógrafos de fim de semana buscam os seus modelos e os seus objetos.
O percurso segue pela rua Rachel, no coração do Plateau Mont-Royal e do Pequeno Portugal. Pausa na padaria para um soberbo pastel de nata. Essa iguaria é conhecida no Brasil como pastel de Belém, talvez porque uma padaria centenária de Portugal, que também tem o nome de Belém, produza os melhores exemplares do divino doce.
Mais adiante, há outra padaria com uma fila imensa. Fiquei curioso e reparei, pelas vidraças, que em todas as mesas havia o mesmo prato. Esse comércio se adaptou ao gosto local, adicionando ao frango assado português as batatas fritas norte-americanas. As caixas térmicas, para comer no local ou levar para casa, são sucesso e mantêm a casa cheia.
Chega a rua Coloniale. Lembro de Nely Arcand, a escritora que morava por alí e que se suicidou há pouco tempo. Pelos seus livros, pude entender um tanto do que se passa na cabeça das pessoas de Montréal. Compreender um tanto dos jovens profissionais, artistas, atores, músicos e comunicadores que habitam e circulam pelo Plateau Mont-Royal. A morte dela foi uma grande perda para a cultura do Québec.
Passo pela praça de Portugal e vejo, na vidraça do café luxuoso que fica em frente, um cartaz da Copa do Mundo 2010. Gostaria de ver essa festa, especialmente se o Brasil ficar em boa colocação. É a hora em que as bandeiras das nações que compõem o Canadá se desvelam. É o tempo em que americanos do sul e do centro se reúnem em torno time que melhor os representem. Talvez não esteja na cidade para ver o movimento e isso me trouxe uma ponta de tristeza.
A minha destinação fica no mesmo lado da calçada, o Les Bobards. Minha amiga Gabrielle, co-organizadora do evento que vai reunir gente que fala português, espanhol e francês, já está na mesa onde tradicionalmente nos reunimos. Ela havia chegado cedo, saiu do trabalho direto para o bar. Ela rabiscava alguma coisa em um pedaço de papel. Seu espírito criativo estava a falar, acho que eu interrompi. Começamos a falar em francês para a seguir mudar para o português. Minutos depois as pessoas começam a chegar. Adicionar o espanhol ao encontro atraiu muita gente.
O percurso segue pela rua Rachel, no coração do Plateau Mont-Royal e do Pequeno Portugal. Pausa na padaria para um soberbo pastel de nata. Essa iguaria é conhecida no Brasil como pastel de Belém, talvez porque uma padaria centenária de Portugal, que também tem o nome de Belém, produza os melhores exemplares do divino doce.
Mais adiante, há outra padaria com uma fila imensa. Fiquei curioso e reparei, pelas vidraças, que em todas as mesas havia o mesmo prato. Esse comércio se adaptou ao gosto local, adicionando ao frango assado português as batatas fritas norte-americanas. As caixas térmicas, para comer no local ou levar para casa, são sucesso e mantêm a casa cheia.
Chega a rua Coloniale. Lembro de Nely Arcand, a escritora que morava por alí e que se suicidou há pouco tempo. Pelos seus livros, pude entender um tanto do que se passa na cabeça das pessoas de Montréal. Compreender um tanto dos jovens profissionais, artistas, atores, músicos e comunicadores que habitam e circulam pelo Plateau Mont-Royal. A morte dela foi uma grande perda para a cultura do Québec.
Passo pela praça de Portugal e vejo, na vidraça do café luxuoso que fica em frente, um cartaz da Copa do Mundo 2010. Gostaria de ver essa festa, especialmente se o Brasil ficar em boa colocação. É a hora em que as bandeiras das nações que compõem o Canadá se desvelam. É o tempo em que americanos do sul e do centro se reúnem em torno time que melhor os representem. Talvez não esteja na cidade para ver o movimento e isso me trouxe uma ponta de tristeza.
A minha destinação fica no mesmo lado da calçada, o Les Bobards. Minha amiga Gabrielle, co-organizadora do evento que vai reunir gente que fala português, espanhol e francês, já está na mesa onde tradicionalmente nos reunimos. Ela havia chegado cedo, saiu do trabalho direto para o bar. Ela rabiscava alguma coisa em um pedaço de papel. Seu espírito criativo estava a falar, acho que eu interrompi. Começamos a falar em francês para a seguir mudar para o português. Minutos depois as pessoas começam a chegar. Adicionar o espanhol ao encontro atraiu muita gente.
19.4.10
A força da palavra
Há vários anos, eu trabalhei em uma cidade do interior da Bahia. Meu primeiro emprego, eu estava feliz da vida em trocar a vida da cidade grande, no litoral, por uma cidade distante, perdida no mapa e sem praias.
Fiz vários amigos, as pessoas daquela cidade me surpreenderam pela simpatia e facilidade de fazer a aproximação. Vários conservo até hoje, me comunicando à distância, via MSN, Orkut, ou qualquer outra facilidade da informática.
Ontem conversava com um dos melhores amigos que fiz naquela época. E ouvi - quero dizer, li - pela tela do computador, coisas que não imaginava.
Ele atualmente possui uma lan house na cidade e possui a sua graduação e pós-graduação em uma Faculade local. Ele me disse que devia tudo a mim. Fiquei surpreso e perguntei por que ele atribuía isso à minha pessoa.
Ele me disse que eu o havia incentivado a estudar. Na época eu ensinava inglês na cidade e estava mais consciente do que nunca do valor da educação. Eu notava que ele era um rapaz inteligente e trabalhador, mas tinha uma deficiência enorme, principalmente em português, fruto do ensino deficiente da rede pública na cidade.
Eu disse que ele deveria investir nele e estudar mais, que ele era inteligente, que ele era capaz. Na época, ele me disse que não era preciso, que tinha um bom emprego, e que, pelos padrões da sua família, ele já havia conseguido muito, pois entre os seus pais e irmãos, ninguém havia estudado muito.
O tempo passou, mudei de cidade, a gente continuou a amizade. O rapaz acabou por perder o seu emprego, mas nunca ficou parado, sempre se virou bem. Foi a época em que veio a febre da instalação das universades particlulares pelo país adentro. A cidade já possuía universidade pública estadual, mas outras particulares se instalaram.
Ele decidiu voltar a estudar e entrou na Faculade de Administração. A cabeça se abriu mais e ele resolveu ser empreendedor. Com o dinheiro dos seus empregos anteriores, comprou alguns computadores, reformou a garagem da casa herdada dos pais - e compartilhada com os irmãos - e montou uma lan house. A localização da casa, no centro da cidade, ajudou para o sucesso do empreendimento.
Ele concluiu o curso e, não satisfeito, fez ainda uma pós-graduação. A sua pequena empresa vai bem, ele já montou uma casa para sua filha e a colocou em uma escola particular. Agora ele está pensando em estudar inglês para que, quem sabe, eu não duvido nada, ele possa fazer um mestrado.
Pela comunicação via MSN eu pude comprovar que o português do meu amigo melhorou de forma impressionante. Eu disse a ele que eu não tinha nenhuma responsabilidade no seu sucesso, que tudo era resultado do seu esforço. Mas ele insistiu que as palavras que eu tinha lhe dito fizeram mais sentido do que eu imaginava. Ele me disse que as palavras de encorajamento que a gente diz para uma pessoa ficam sempre marcadas na memória. Ele me disse ainda que, quando se deparava com dificuldade nos estudos, ele lembrava sempre: "não posso decepcionar o meu amigo, ele confia em mim". Confesso que fiquei alguns instantes sem respirar, com as lágrimas insistindo nos meus olhos.
E, para completar, ele disse que convenceu duas de suas irmãs a estudar. Elas agora também estão fazendo cursos superiores. Eu disse a ele que isso era resultado do círculo virtuoso da educação. Eu ganhei o dia.
Fiz vários amigos, as pessoas daquela cidade me surpreenderam pela simpatia e facilidade de fazer a aproximação. Vários conservo até hoje, me comunicando à distância, via MSN, Orkut, ou qualquer outra facilidade da informática.
Ontem conversava com um dos melhores amigos que fiz naquela época. E ouvi - quero dizer, li - pela tela do computador, coisas que não imaginava.
Ele atualmente possui uma lan house na cidade e possui a sua graduação e pós-graduação em uma Faculade local. Ele me disse que devia tudo a mim. Fiquei surpreso e perguntei por que ele atribuía isso à minha pessoa.
Ele me disse que eu o havia incentivado a estudar. Na época eu ensinava inglês na cidade e estava mais consciente do que nunca do valor da educação. Eu notava que ele era um rapaz inteligente e trabalhador, mas tinha uma deficiência enorme, principalmente em português, fruto do ensino deficiente da rede pública na cidade.
Eu disse que ele deveria investir nele e estudar mais, que ele era inteligente, que ele era capaz. Na época, ele me disse que não era preciso, que tinha um bom emprego, e que, pelos padrões da sua família, ele já havia conseguido muito, pois entre os seus pais e irmãos, ninguém havia estudado muito.
O tempo passou, mudei de cidade, a gente continuou a amizade. O rapaz acabou por perder o seu emprego, mas nunca ficou parado, sempre se virou bem. Foi a época em que veio a febre da instalação das universades particlulares pelo país adentro. A cidade já possuía universidade pública estadual, mas outras particulares se instalaram.
Ele decidiu voltar a estudar e entrou na Faculade de Administração. A cabeça se abriu mais e ele resolveu ser empreendedor. Com o dinheiro dos seus empregos anteriores, comprou alguns computadores, reformou a garagem da casa herdada dos pais - e compartilhada com os irmãos - e montou uma lan house. A localização da casa, no centro da cidade, ajudou para o sucesso do empreendimento.
Ele concluiu o curso e, não satisfeito, fez ainda uma pós-graduação. A sua pequena empresa vai bem, ele já montou uma casa para sua filha e a colocou em uma escola particular. Agora ele está pensando em estudar inglês para que, quem sabe, eu não duvido nada, ele possa fazer um mestrado.
Pela comunicação via MSN eu pude comprovar que o português do meu amigo melhorou de forma impressionante. Eu disse a ele que eu não tinha nenhuma responsabilidade no seu sucesso, que tudo era resultado do seu esforço. Mas ele insistiu que as palavras que eu tinha lhe dito fizeram mais sentido do que eu imaginava. Ele me disse que as palavras de encorajamento que a gente diz para uma pessoa ficam sempre marcadas na memória. Ele me disse ainda que, quando se deparava com dificuldade nos estudos, ele lembrava sempre: "não posso decepcionar o meu amigo, ele confia em mim". Confesso que fiquei alguns instantes sem respirar, com as lágrimas insistindo nos meus olhos.
E, para completar, ele disse que convenceu duas de suas irmãs a estudar. Elas agora também estão fazendo cursos superiores. Eu disse a ele que isso era resultado do círculo virtuoso da educação. Eu ganhei o dia.
7.4.10
Boulettes
Hoje Montréal amanheceu cinzenta e chuvosa. Peguei chuva nos cinco minutos - que pareciam uma eternidade - de caminhada da estaçao do metro até o meu destino. O guarda-chuva nao foi suficiente e fiquei com as canelas ensopadas.
O Canada sempre me traz novidades climáticas. No meu trajeto na chuva, vi pequenas bolas brancas se mexendo no chao. Pequenas e redondinhas, misturadas com as gotas de chuva que salpicavam a calçada. Meio lento como sou, início de manha, nao entendi nada, quase achei que era alucinaçao. Elas pareciam bolinhas de isopor. Depois percebi que elas vinham do céu e que o barulho da chuva estava mais forte sobre o meu guarda-chuva. Granizo!
O Canada sempre me traz novidades climáticas. No meu trajeto na chuva, vi pequenas bolas brancas se mexendo no chao. Pequenas e redondinhas, misturadas com as gotas de chuva que salpicavam a calçada. Meio lento como sou, início de manha, nao entendi nada, quase achei que era alucinaçao. Elas pareciam bolinhas de isopor. Depois percebi que elas vinham do céu e que o barulho da chuva estava mais forte sobre o meu guarda-chuva. Granizo!
2.4.10
Verde
Início de abril e a temperatura chega a 25 graus em Montréal. Melhor acolhida impossível para os turistas que vieram aproveitar o feriado de Páscoa. A cidade está em clima de festa. E pensar que, em abril de 2007, primeira vez no Canadá, as temperaturas estavam abaixo de zero. Algo está realmente acontecendo no planeta Terra. A neve demorou de chegar, só apareceu no final de dezembro e foi embora antes de março começar.
No parque Lafontaine a temperatura de 25 graus convive com as últimas barras de gelo que vão derretendo. Os patos saíram da toca e nadam pelas poças do grande lago, que só estará cheio quando o tempo se firmar.
As árvores começam a reviver e plantas vão brotando, mas ninguém espera. Todo mundo já está com a toalha, cobertor ou esteira estendida no que deveria ser um gramado, mas ainda é apenas terra e raízes. O verde brilhante da grama ainda está por aparecer.
Gente fingindo que está lendo um livro, mas está mais interessada no movimento. Gente jovem reunida em torno de garrafas de cerveja e vinho, devidamente escondidas em sacos de papel e mochilas. Restos de sanduíche fazendo a alegria dos esquilos. Gente jogando cartas, gente jogando jogos orientais, gente namorando, gente batucando, gente tocando violão. É primavera, n'est-ce pas?
No parque Lafontaine a temperatura de 25 graus convive com as últimas barras de gelo que vão derretendo. Os patos saíram da toca e nadam pelas poças do grande lago, que só estará cheio quando o tempo se firmar.
As árvores começam a reviver e plantas vão brotando, mas ninguém espera. Todo mundo já está com a toalha, cobertor ou esteira estendida no que deveria ser um gramado, mas ainda é apenas terra e raízes. O verde brilhante da grama ainda está por aparecer.
Gente fingindo que está lendo um livro, mas está mais interessada no movimento. Gente jovem reunida em torno de garrafas de cerveja e vinho, devidamente escondidas em sacos de papel e mochilas. Restos de sanduíche fazendo a alegria dos esquilos. Gente jogando cartas, gente jogando jogos orientais, gente namorando, gente batucando, gente tocando violão. É primavera, n'est-ce pas?
24.2.10
Flocos
A neve cai por detrás da parede envidraçada. Aqui dentro a água continua morna, é um óasis de calor sob o manto branco e frio que vai se formando. Os flocos caem suavemente, sem pressa, e montam um espetáculo tranquilizante. Gosto de estar aqui, no meu recanto público que tornei particular.