Minha rua começa em um bairro rico. Cheio de casas grandes e confortáveis. Separadas por um viaduto que cobre um imenso vale, que isola endinheirados do resto da cidade.
Minha rua continua a voar, o viaduto pousa sobre uma via importante, caminho de belezas e luxos. Aquela que o metrô segue verde, oculto nas profundezas, sem escolhas, sem desvios.
Minha rua corta e contorna um encontro das Naçõoes Unidas, um emaranhado de prédios, casas de gente do mundo inteiro.
Minha rua prossegue, mostra sua história real, as casas antigas, os abrigos dos perdidos, dos problemáticos, dos que vivem em extremos, em paradas frequentes, carros e sirenes barulhentos, médicos e policiais.
Minha rua é conciliadora e passa por templos de deuses que vivem sem conflitos. Mas quem causa conflitos não são os deuses, ora pois. São os que buscam nos deuses, pobres desculpas, apoio para prepotências.
Minha rua não para, segue o fluxo e se transforma de novo, são lojas de móveis e decorações, margeando o centro do dinheiro, das gravatas e dos passos rápidos.
Minha rua vai até o grande mercado, agora das carnes, dos peixes e dos verdes. Da comida feita para encantar. Logo, logo, chegam prédios vermelhos, varandas, calmas, e praças.
Minha rua vai trocando de roupa no caminho, vai ganhando máquinas e desvios, marcas de índios, enquanto perde buracos. Ela não está pronta, está atrasada, quando bicicletas e volantes têm pressa.
Minha rua não é minha, é bom deixar claro. É da cidade, é de todo mundo, é de quem chegar, de quem quiser e souber usar, como qualquer outro lugar.
Minha rua vai descendo, vai parando na beira do lago, um descanso da cidade. Mas não é ali que ela termina. É ali que ela começa. Ou é assim que os homens quiseram e disseram.
Para lembrá-la que é na água que tudo inicia e não onde acaba.
Crônicas e comentários de Danilo Menezes. Jornalista brasileiro da Bahia, atualmente morando em Toronto, Ontario, Canada.
22.11.12
21.11.12
Aprendendo línguas
Há
algum tempo venho percebendo que em países de grande extensão
territorial, que possuem apenas uma língua oficial, como é o caso do
Brasil, Estados Unidos e Russia, os seus habitantes têm alguma
dificuldade, talvez por poucas oportunidades de contatos com
estrangeiros, para aprender e dominar um segundo idioma. Então não se faz muito esforço para aprender vocabulário estrangeiro. É como se houvesse a sensação de auto-suficiência na própria língua.
Americanos são conhecidos pela incapacidade de comunicação em uma segunda língua. Os russos têm problema semelhante. Entre os brasileiros, que costumam jogar sempre a culpa no sistema de educação, isso também acontece. Mas efetivamente é caro estudar línguas estrangeiras no Brasil e mais caro ainda sair do país para praticá-las.
O gosto por línguas estrangeiras foi um dos motivos da minha mudança de país. Estava cansado de estudar, estudar, estudar gramática e sempre com dificuldade para compreender o que era falado. A fluência em uma segunda língua exige vivência, mesmo que eventual. Talvez por isso os europeus tenham mais sorte: a proximidade entre os países permite uma troca mais intensa. É mais fácil e barato sair para estudar e praticar. No meu caso, ocorre um fato inusitado: tenho mais oportunidade de praticar espanhol aqui em Toronto do que em Salvador. Pelo grande número de hispânicos que existe na cidade.
A internet chegou trazendo mudanças nesse cenário de aprendizagem de línguas. Se o inglês passou a ser uma língua quase universal, existem inúmeros recursos. Há cursos e mais cursos online, páginas de testes gramaticais, jornais gratuitos. As redes sociais possbilitam informações diárias e atualizadas na língua que se quer aprender. Basta usar. E ter tempo e energia disponíveis.
Americanos são conhecidos pela incapacidade de comunicação em uma segunda língua. Os russos têm problema semelhante. Entre os brasileiros, que costumam jogar sempre a culpa no sistema de educação, isso também acontece. Mas efetivamente é caro estudar línguas estrangeiras no Brasil e mais caro ainda sair do país para praticá-las.
O gosto por línguas estrangeiras foi um dos motivos da minha mudança de país. Estava cansado de estudar, estudar, estudar gramática e sempre com dificuldade para compreender o que era falado. A fluência em uma segunda língua exige vivência, mesmo que eventual. Talvez por isso os europeus tenham mais sorte: a proximidade entre os países permite uma troca mais intensa. É mais fácil e barato sair para estudar e praticar. No meu caso, ocorre um fato inusitado: tenho mais oportunidade de praticar espanhol aqui em Toronto do que em Salvador. Pelo grande número de hispânicos que existe na cidade.
A internet chegou trazendo mudanças nesse cenário de aprendizagem de línguas. Se o inglês passou a ser uma língua quase universal, existem inúmeros recursos. Há cursos e mais cursos online, páginas de testes gramaticais, jornais gratuitos. As redes sociais possbilitam informações diárias e atualizadas na língua que se quer aprender. Basta usar. E ter tempo e energia disponíveis.
Alófonos
Ótima crônica de Chantal Hébert, uma das
melhores jornalistas do Canadá. Ela é perfeitamente bilíngue e escreve
em inglês (no Toronto Star) e em francês (Le Devoir, L'Actualité) e participa de programas jornalísticos na TV - nas duas línguas!
Segundo as últimas pesquisas, o número de pessoas no Canadá cuja primeira língua é estrangeira, os alófonos (20.6%), é praticamente igual ao número de francófonos (21%), cuja língua materna é o francês. Mas, de modo diferente do que ocorre nos EUA com o espanhol, no Canadá várias línguas formam o total de estrangeiras.
O mais interessante é que se o francês perde peso no total da população, o interesse nessa língua só faz aumentar. O número de escolas de língua francesa e de alunos tem aumentado bastante em várias províncias do Canadá.
Segundo as últimas pesquisas, o número de pessoas no Canadá cuja primeira língua é estrangeira, os alófonos (20.6%), é praticamente igual ao número de francófonos (21%), cuja língua materna é o francês. Mas, de modo diferente do que ocorre nos EUA com o espanhol, no Canadá várias línguas formam o total de estrangeiras.
O mais interessante é que se o francês perde peso no total da população, o interesse nessa língua só faz aumentar. O número de escolas de língua francesa e de alunos tem aumentado bastante em várias províncias do Canadá.
14.11.12
Dos discos da infância
Eu ouvia Ivete Sangalo e Maria Betânia cantando uma música de Carlinhos Brown, chamada Muito obrigado axé, uma celebraçao do sincretismo religioso da Bahia. É também uma homenagem ao orixá Ogum, que Brown venera, e que, me disseram uma vez, também me guia.
Gosto de Maria Betânia desde a infância. Aprendi a gostar com o meu pai. Em minha casa tinha um disco dela, Álibi, que eu ouvia sem parar. Músicas hoje clássicas da MPB, como Negue, Cálice e Explode Coração. Também tinha outro disco, Mel, que eu só faltava furar de tanto ouvir.
Meu pai gostava muito de música. A lenda conta que ele, antes de casar, tinha uma coleção enorme de discos brasileiros e estrangeiros. A história continua e diz que boa parte dos discos foi roubada por alguém (pintor, pedreiro?) que foi fazer um trabalho e levou boa parte dos discos embora, música de qualidade, para ouvir calmamente em casa. O restante foi doado, pois não havia espaço na moradia dos recém-casados.
Não sei se a lenda diz a verdade. O que sei é que, pelas fotografias em preto-e-branco, ficou registrado apenas um antigo toca-discos. Era um móvel de madeira, roído nas quinas. Comigo, criança sorridente e matreira, posando ao lado. Mas o toca-discos não era roído por cupins nem ratos. Vá saber o que se passa na cabeça de uma criança traquina. Ou que gosto tem um móvel de madeira. Era roído por mim.
Meu pai era uma pessoa marcante. O famoso seu Jurinha (originalmente Jurandyr). Expansivo, comunicativo, simpático, alegre, festeiro. Ele e minha mãe, como todo casal com vida social ativa, gostavam de receber de vez em quando casais amigos em casa. Ele providenciava bebidas e ingredientes, enquanto minha mãe, Dona Hermosa, sempre perfeccionista, se virava aflita para organizar tudo.
Uma vez eles receberam dois casais para almoço, durante um dos verões à beira-mar de Ilhéus. Um dos casais vinha de fora da cidade. Provavelmente o homem era colega de trabalho da empresa. Gentilmente, em retribuição pelo convite, o casal de fora levou um presente. Um disco. Um LP (long-play), um bolachão preto de vinil.
O belo disco Minha Voz, de Gal Costa. Cantora que meu pai detestava.
Ele recebeu o presente com um largo sorriso. Não é tudo mundo que faz uma gentileza daquelas, de levar um presente em retribuição a um convite de almoço. Ele rasgou o papel da embalagem para ver do que se tratava. Ao perceber que era um disco de Gal Costa, o sorriso morreu no rosto. Rápida e sorrateiramente, ele passou o pacote para mim, que estava ao seu lado. Como que para se livrar do traste.
Eu levei o disco e o coloquei ao lado dos outros da casa, que ficavam armazenados no meu quarto, enquanto seu Jurinha levava os convidados para os tira-gostos, cervejas e drinques na bela varanda debruçada sobre a vista do mar de Ilhéus, um dos orgulhos da casa.
O papo continuou animado até que caiu em um tema às vezes polêmico: gostos musicais. Com a franqueza que lhe era característica e sem auto-restrições, agora liberadas pelos efeitos etílicos, seu Jurinha solta a frase-bomba:
"Eu detesto Gal Costa!"
O casal se entreolhou, o marido levantou os ombros como se dissesse para a mulher: "Pelo menos a gente tentou agradar!".
Percebendo o mal-estar, minha mãe, que não tinha tido oportunidade de ver o tal disco da discórdia nem de que artista se tratava, bradou: "Ah, pois eu adoro Gal Costa!". Mesmo sem realmente gostar muito.
O almoço prosseguiu e foi um sucesso, a comida sempre elogiada.
No dia seguinte, recuperado dos efeitos devastadores da sinceridade da cerveja, seu Jurinha ainda tentou se desculpar com o casal. Não sei se teve grande sucesso. A verdade tinha sido dita.
Quem curtiu mesmo o disco de Gal Costa fui eu. Para mim, um dos melhores discos dela. Havia músicas inesquecíveis como Festa do Interior e Açaí, de Djavan.
Açaí me traz uma outra lembrança muito gostosa. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos. Eu lembro da minha prima Raquel, com uns 3 ou 4. Sempre linda, bochechuda, alegre e sorridente. Raquel adorava a música Açaí, um grande sucesso na época, e de vez em quando a cantava.
Agora imagine o que é uma criança nessa idade cantando versos complexos como:
"Açaí guardiã, zum de besouro, um ímã. Branca é tez da manhã."
Raquel cantava a música, toda animada, sorridente, batendo palmas. Eu ficava olhando, admirado, tentando entender as palavras que ela estava dizendo.
Gosto de Maria Betânia desde a infância. Aprendi a gostar com o meu pai. Em minha casa tinha um disco dela, Álibi, que eu ouvia sem parar. Músicas hoje clássicas da MPB, como Negue, Cálice e Explode Coração. Também tinha outro disco, Mel, que eu só faltava furar de tanto ouvir.
Meu pai gostava muito de música. A lenda conta que ele, antes de casar, tinha uma coleção enorme de discos brasileiros e estrangeiros. A história continua e diz que boa parte dos discos foi roubada por alguém (pintor, pedreiro?) que foi fazer um trabalho e levou boa parte dos discos embora, música de qualidade, para ouvir calmamente em casa. O restante foi doado, pois não havia espaço na moradia dos recém-casados.
Não sei se a lenda diz a verdade. O que sei é que, pelas fotografias em preto-e-branco, ficou registrado apenas um antigo toca-discos. Era um móvel de madeira, roído nas quinas. Comigo, criança sorridente e matreira, posando ao lado. Mas o toca-discos não era roído por cupins nem ratos. Vá saber o que se passa na cabeça de uma criança traquina. Ou que gosto tem um móvel de madeira. Era roído por mim.
Meu pai era uma pessoa marcante. O famoso seu Jurinha (originalmente Jurandyr). Expansivo, comunicativo, simpático, alegre, festeiro. Ele e minha mãe, como todo casal com vida social ativa, gostavam de receber de vez em quando casais amigos em casa. Ele providenciava bebidas e ingredientes, enquanto minha mãe, Dona Hermosa, sempre perfeccionista, se virava aflita para organizar tudo.
Uma vez eles receberam dois casais para almoço, durante um dos verões à beira-mar de Ilhéus. Um dos casais vinha de fora da cidade. Provavelmente o homem era colega de trabalho da empresa. Gentilmente, em retribuição pelo convite, o casal de fora levou um presente. Um disco. Um LP (long-play), um bolachão preto de vinil.
O belo disco Minha Voz, de Gal Costa. Cantora que meu pai detestava.
Ele recebeu o presente com um largo sorriso. Não é tudo mundo que faz uma gentileza daquelas, de levar um presente em retribuição a um convite de almoço. Ele rasgou o papel da embalagem para ver do que se tratava. Ao perceber que era um disco de Gal Costa, o sorriso morreu no rosto. Rápida e sorrateiramente, ele passou o pacote para mim, que estava ao seu lado. Como que para se livrar do traste.
O disco da discórdia |
O papo continuou animado até que caiu em um tema às vezes polêmico: gostos musicais. Com a franqueza que lhe era característica e sem auto-restrições, agora liberadas pelos efeitos etílicos, seu Jurinha solta a frase-bomba:
"Eu detesto Gal Costa!"
O casal se entreolhou, o marido levantou os ombros como se dissesse para a mulher: "Pelo menos a gente tentou agradar!".
Percebendo o mal-estar, minha mãe, que não tinha tido oportunidade de ver o tal disco da discórdia nem de que artista se tratava, bradou: "Ah, pois eu adoro Gal Costa!". Mesmo sem realmente gostar muito.
O almoço prosseguiu e foi um sucesso, a comida sempre elogiada.
No dia seguinte, recuperado dos efeitos devastadores da sinceridade da cerveja, seu Jurinha ainda tentou se desculpar com o casal. Não sei se teve grande sucesso. A verdade tinha sido dita.
Quem curtiu mesmo o disco de Gal Costa fui eu. Para mim, um dos melhores discos dela. Havia músicas inesquecíveis como Festa do Interior e Açaí, de Djavan.
Açaí me traz uma outra lembrança muito gostosa. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos. Eu lembro da minha prima Raquel, com uns 3 ou 4. Sempre linda, bochechuda, alegre e sorridente. Raquel adorava a música Açaí, um grande sucesso na época, e de vez em quando a cantava.
Agora imagine o que é uma criança nessa idade cantando versos complexos como:
"Açaí guardiã, zum de besouro, um ímã. Branca é tez da manhã."
Raquel cantava a música, toda animada, sorridente, batendo palmas. Eu ficava olhando, admirado, tentando entender as palavras que ela estava dizendo.
7.11.12
Frida & Diego
A exposiçào Frida & Diego: Passion, Politics and Painting, na Ontario Art Gallery, traz inúmeras obras do famoso casal de pintores mexicanos, junto com várias fotografias, principalmente de Frida.
A pintura de Frida Kahlo é mais arrebatadora, mais emocional e dramática. O trabalho de Diego é bem interessante, mas não seduz tanto quanto o de sua mulher.
Foi bom ver a exposição depois de ter visto o filme. Assim dá para entender melhor as histórias que os quadros de Frida contam.
Durante a vida em comum, Diego Rivera era mais famoso. Era conhecido como o maior pintor de murais do México, especializado em retratar cenas com temas sociais. Frida se dedicava aos seus autorretratos. Depois da morte dos dois, ela foi reconhecida como a artista mais icônica do modernismo. As suas pinturas mostram a dor física depois do acidente de ônibus, quando ela tinha 18 anos, e a angústia causada pelas infidelidades de Diego e pela impossibilidade de ter filhos.
Além de quadros, fotos e vídeos, havia um colete de gesso que Frida usara para se recuperar depois de uma das suas inúmeras cirurgias.
A pintura de Frida Kahlo é mais arrebatadora, mais emocional e dramática. O trabalho de Diego é bem interessante, mas não seduz tanto quanto o de sua mulher.
Foi bom ver a exposição depois de ter visto o filme. Assim dá para entender melhor as histórias que os quadros de Frida contam.
Durante a vida em comum, Diego Rivera era mais famoso. Era conhecido como o maior pintor de murais do México, especializado em retratar cenas com temas sociais. Frida se dedicava aos seus autorretratos. Depois da morte dos dois, ela foi reconhecida como a artista mais icônica do modernismo. As suas pinturas mostram a dor física depois do acidente de ônibus, quando ela tinha 18 anos, e a angústia causada pelas infidelidades de Diego e pela impossibilidade de ter filhos.
Além de quadros, fotos e vídeos, havia um colete de gesso que Frida usara para se recuperar depois de uma das suas inúmeras cirurgias.
4.11.12
O humor pirracento de brasileiros e argentinos
Antes de começar a estudar espanhol, no Brasil, há vários anos, alguns fatores influíram na minha escolha pela língua de Cervantes. O Mercosul estava muito em destaque, a língua espanhola começava ser ensinada nas escolas brasileiras, havia a proximidade com o português e a possibilidade de adquirir fluência em pouco tempo, uma vez que o aprendizado de uma língua muito diferente da sua língua materna é mais longo. E nada assegura que um dia você terá capacidade de se comunicar com facilidade nela. Além tudo disso, havia a possibilidade de praticar viajando dentro da própria América do Sul ou conversando com turistas no Brasil.
Os estudos de espanhol foram muito agradáveis. Optei pelo curso de extensão no Instituto de Letras da UFBA. Mais barato que nas escolas especializadas e de ótima qualidade. A primeira professora que tive foi uma espanhola da Cataluña. A proximidade entre português e espanhol possibilita um fato espantoso. Já no primeiro semestre, a professora falava inteiramente em espanhol. E a turma entendia tudo.
Ela não precisava passar para o português para dar explicações nem fazer malabarismos com as mãos para se fazer compreender.
No semestre seguinte, com o início dos estudos na Faculdade de Comunicação, passei para as aulas aos sábados, apenas uma vez por semana. Apesar de parecer pouco tempo, o conteúdo era bem rico. Eu fazia contorcionismos para conjugar trabalho, estudos acadêmicos, espanhol, análise e vida social. A turma era ótima e nós permanecemos juntos até o final do curso.
Tive mais três professores durante os seis semestres: uma brasileira (casada com um argentino, ela foi a mais fraca de todos), um peruano (um senhor gordo, com cara de índio, muito divertido) e outro brasileiro da Bahia. Este baiano talvez tenha sido o melhor professor. Ele fazia carreira acadêmica na área de linguística da UFBA e era apaixonando pelo espanhol. Passava longas temporadas no México, estudando teoria e, claro, praticando a língua com nativos.
Por conta de tantos professores com sotaques diferentes, não sei com qual vertente o meu espanhol com sotaque brasileiro se parece mais.
Lembrei de toda essa história depois que fui participar de um encontro linguístico (mais um!) de gente se revezando entre francês e espanhol. E fico surpreso como o espanhol chega fácil na ponta da língua. Se os brasileiros compreendem com certa facilidade o espanhol, não se pode dizer que a reciproca seja verdadeira. O português não é imediato para hispanos.
Uma professora de linguística me falou rapidamente que isso se deve a alguns sons extras que usamos no português, mas que não existem no espanhol. Daí a cara de espanto deles quando usamos palavras que parecem tão comuns aos dois idiomas, mas que, para eles, é algo irreconhecível.
Havia venezuelanos, colombianos, argentinos, canadenses e gente de outras partes do mundo. Conversar com os latinos não é nada difícil. Assim como os brasileiros, são falantes e têm aquela empatia rápida e forte que nos caracteriza.
Depois de quatro anos no Canadá e conhecendo um número cada dia maior de sul-americanos, como nunca aconteceu no Brasil, eu começo a perceber características que se repetem. Peruanos e venezuelanos são muitíssimo simpáticos. Os venezuelanos um pouco mais exuberantes, os peruanos mais tímidos. Colombianos são levemente esnobes, orgulhosos, medem bastante as pessoas. Mas, passado estranhamento inicial, são comunicativos e gentis. Colombianos e venezuelanos têm uma rixa histórica, coisa de vizinhos, mas não chegam a ser hostis entre si.
Brasileiros e argentinos têm em comum aquele irritante senso de humor piadístico-sarcástico. Aquela velha história de perder o amigo mas não perder a piada. Apesar de toda a pirraça, principalmente sobre futebol, brasileiros e argentinos não são inimigos. São países suficientemente inteligentes para ter noção da força um do outro.
Existiram algumas guerras entre Brasil e Argentina, por influência e disputa de terras. Mas os dois foram aliados, ainda com o apoio do Uruguai, contra o pobre do Paraguai, em uma guerra bem sangrenta, a Guerra do Paraguai. Essa aliança parece não ter mais terminado.
Em uma prova bem recente, o trio ternura Brasil-Argentina-Uruguai aproveitou a suspensão do Paraguai, por causa da deposição do presidente, para incluir a Venezuela no Mercosul. O Paraguai era contra a inclusão.
Argentinos sonham com as praias brasileiras e os brasileiros adoram passar alguns dias de sonhos europeus, tomando vinho e café acompanhado de água com gás. Comendo carnes e massas em Buenos Aires. Sem esquecer de alfajores e empanadas.
O sotaque espanhol dos sul-americanos para mim é mais fácil de ser compreendido do que o sotaque mexicano e da Espanha. Tenho a impressão de que há ritmo e entonação semelhantes. Talvez, em terras europeias, portugueses e espanhóis compartilhem a mesma impressão quando conversam entre si. Coisa de hemisfério.
Uma coisa interessante que vim perceber ao mudar para o Canadá é a questão da imagem entre os vizinhos. Dentro do Brasil, a gente sempre acha que foi ou é vítima dos outros países, que fomos explorados por europeus e sofremos intimidações constantes da América do Norte.
Entre os vizinhos do Sul, pelo contrário, o Brasil chega a ter uma imagem de imperialista. Como uma amiga argentina uma vez reclamou: "Os brasileiros querem tudo!", falando das constantes disputas comerciais do seu país com o Brasil.
E se a gente for olhar na história, realmente o Brasil tem um lado forte de dominação e luta pelo território. Basta olhar a aquisição do Acre. Eram terras que pertenciam à Bolívia, mas que estavam cedidas aos Estados Unidos e ocupadas por fazendeiros brasileiros. Frente aos conflitos, o governo brasileiro acabou por adquirir a área e incorporá-la ao mapa do Brasil.
Não é preciso ir muito longe para ver atualmente uma situação semelhante. Produtores brasileiros dominando o cultivo de soja no Paraguai. Os famosos brasilguaios. Porém, na atualidade diplomática, as encrencas são resolvidas sem maiores danos, salvo um ou outro tiroteio por aquelas bandas.
Os estudos de espanhol foram muito agradáveis. Optei pelo curso de extensão no Instituto de Letras da UFBA. Mais barato que nas escolas especializadas e de ótima qualidade. A primeira professora que tive foi uma espanhola da Cataluña. A proximidade entre português e espanhol possibilita um fato espantoso. Já no primeiro semestre, a professora falava inteiramente em espanhol. E a turma entendia tudo.
Ela não precisava passar para o português para dar explicações nem fazer malabarismos com as mãos para se fazer compreender.
No semestre seguinte, com o início dos estudos na Faculdade de Comunicação, passei para as aulas aos sábados, apenas uma vez por semana. Apesar de parecer pouco tempo, o conteúdo era bem rico. Eu fazia contorcionismos para conjugar trabalho, estudos acadêmicos, espanhol, análise e vida social. A turma era ótima e nós permanecemos juntos até o final do curso.
Tive mais três professores durante os seis semestres: uma brasileira (casada com um argentino, ela foi a mais fraca de todos), um peruano (um senhor gordo, com cara de índio, muito divertido) e outro brasileiro da Bahia. Este baiano talvez tenha sido o melhor professor. Ele fazia carreira acadêmica na área de linguística da UFBA e era apaixonando pelo espanhol. Passava longas temporadas no México, estudando teoria e, claro, praticando a língua com nativos.
Por conta de tantos professores com sotaques diferentes, não sei com qual vertente o meu espanhol com sotaque brasileiro se parece mais.
Lembrei de toda essa história depois que fui participar de um encontro linguístico (mais um!) de gente se revezando entre francês e espanhol. E fico surpreso como o espanhol chega fácil na ponta da língua. Se os brasileiros compreendem com certa facilidade o espanhol, não se pode dizer que a reciproca seja verdadeira. O português não é imediato para hispanos.
Uma professora de linguística me falou rapidamente que isso se deve a alguns sons extras que usamos no português, mas que não existem no espanhol. Daí a cara de espanto deles quando usamos palavras que parecem tão comuns aos dois idiomas, mas que, para eles, é algo irreconhecível.
Havia venezuelanos, colombianos, argentinos, canadenses e gente de outras partes do mundo. Conversar com os latinos não é nada difícil. Assim como os brasileiros, são falantes e têm aquela empatia rápida e forte que nos caracteriza.
Depois de quatro anos no Canadá e conhecendo um número cada dia maior de sul-americanos, como nunca aconteceu no Brasil, eu começo a perceber características que se repetem. Peruanos e venezuelanos são muitíssimo simpáticos. Os venezuelanos um pouco mais exuberantes, os peruanos mais tímidos. Colombianos são levemente esnobes, orgulhosos, medem bastante as pessoas. Mas, passado estranhamento inicial, são comunicativos e gentis. Colombianos e venezuelanos têm uma rixa histórica, coisa de vizinhos, mas não chegam a ser hostis entre si.
Brasileiros e argentinos têm em comum aquele irritante senso de humor piadístico-sarcástico. Aquela velha história de perder o amigo mas não perder a piada. Apesar de toda a pirraça, principalmente sobre futebol, brasileiros e argentinos não são inimigos. São países suficientemente inteligentes para ter noção da força um do outro.
Exemplo de "gracinha" feita por um site brasileiro |
Em uma prova bem recente, o trio ternura Brasil-Argentina-Uruguai aproveitou a suspensão do Paraguai, por causa da deposição do presidente, para incluir a Venezuela no Mercosul. O Paraguai era contra a inclusão.
Argentinos sonham com as praias brasileiras e os brasileiros adoram passar alguns dias de sonhos europeus, tomando vinho e café acompanhado de água com gás. Comendo carnes e massas em Buenos Aires. Sem esquecer de alfajores e empanadas.
O sotaque espanhol dos sul-americanos para mim é mais fácil de ser compreendido do que o sotaque mexicano e da Espanha. Tenho a impressão de que há ritmo e entonação semelhantes. Talvez, em terras europeias, portugueses e espanhóis compartilhem a mesma impressão quando conversam entre si. Coisa de hemisfério.
Uma coisa interessante que vim perceber ao mudar para o Canadá é a questão da imagem entre os vizinhos. Dentro do Brasil, a gente sempre acha que foi ou é vítima dos outros países, que fomos explorados por europeus e sofremos intimidações constantes da América do Norte.
Entre os vizinhos do Sul, pelo contrário, o Brasil chega a ter uma imagem de imperialista. Como uma amiga argentina uma vez reclamou: "Os brasileiros querem tudo!", falando das constantes disputas comerciais do seu país com o Brasil.
E se a gente for olhar na história, realmente o Brasil tem um lado forte de dominação e luta pelo território. Basta olhar a aquisição do Acre. Eram terras que pertenciam à Bolívia, mas que estavam cedidas aos Estados Unidos e ocupadas por fazendeiros brasileiros. Frente aos conflitos, o governo brasileiro acabou por adquirir a área e incorporá-la ao mapa do Brasil.
Não é preciso ir muito longe para ver atualmente uma situação semelhante. Produtores brasileiros dominando o cultivo de soja no Paraguai. Os famosos brasilguaios. Porém, na atualidade diplomática, as encrencas são resolvidas sem maiores danos, salvo um ou outro tiroteio por aquelas bandas.