Gosto de Maria Betânia desde a infância. Aprendi a gostar com o meu pai. Em minha casa tinha um disco dela, Álibi, que eu ouvia sem parar. Músicas hoje clássicas da MPB, como Negue, Cálice e Explode Coração. Também tinha outro disco, Mel, que eu só faltava furar de tanto ouvir.
Meu pai gostava muito de música. A lenda conta que ele, antes de casar, tinha uma coleção enorme de discos brasileiros e estrangeiros. A história continua e diz que boa parte dos discos foi roubada por alguém (pintor, pedreiro?) que foi fazer um trabalho e levou boa parte dos discos embora, música de qualidade, para ouvir calmamente em casa. O restante foi doado, pois não havia espaço na moradia dos recém-casados.
Não sei se a lenda diz a verdade. O que sei é que, pelas fotografias em preto-e-branco, ficou registrado apenas um antigo toca-discos. Era um móvel de madeira, roído nas quinas. Comigo, criança sorridente e matreira, posando ao lado. Mas o toca-discos não era roído por cupins nem ratos. Vá saber o que se passa na cabeça de uma criança traquina. Ou que gosto tem um móvel de madeira. Era roído por mim.
Meu pai era uma pessoa marcante. O famoso seu Jurinha (originalmente Jurandyr). Expansivo, comunicativo, simpático, alegre, festeiro. Ele e minha mãe, como todo casal com vida social ativa, gostavam de receber de vez em quando casais amigos em casa. Ele providenciava bebidas e ingredientes, enquanto minha mãe, Dona Hermosa, sempre perfeccionista, se virava aflita para organizar tudo.
Uma vez eles receberam dois casais para almoço, durante um dos verões à beira-mar de Ilhéus. Um dos casais vinha de fora da cidade. Provavelmente o homem era colega de trabalho da empresa. Gentilmente, em retribuição pelo convite, o casal de fora levou um presente. Um disco. Um LP (long-play), um bolachão preto de vinil.
O belo disco Minha Voz, de Gal Costa. Cantora que meu pai detestava.
Ele recebeu o presente com um largo sorriso. Não é tudo mundo que faz uma gentileza daquelas, de levar um presente em retribuição a um convite de almoço. Ele rasgou o papel da embalagem para ver do que se tratava. Ao perceber que era um disco de Gal Costa, o sorriso morreu no rosto. Rápida e sorrateiramente, ele passou o pacote para mim, que estava ao seu lado. Como que para se livrar do traste.
O disco da discórdia |
O papo continuou animado até que caiu em um tema às vezes polêmico: gostos musicais. Com a franqueza que lhe era característica e sem auto-restrições, agora liberadas pelos efeitos etílicos, seu Jurinha solta a frase-bomba:
"Eu detesto Gal Costa!"
O casal se entreolhou, o marido levantou os ombros como se dissesse para a mulher: "Pelo menos a gente tentou agradar!".
Percebendo o mal-estar, minha mãe, que não tinha tido oportunidade de ver o tal disco da discórdia nem de que artista se tratava, bradou: "Ah, pois eu adoro Gal Costa!". Mesmo sem realmente gostar muito.
O almoço prosseguiu e foi um sucesso, a comida sempre elogiada.
No dia seguinte, recuperado dos efeitos devastadores da sinceridade da cerveja, seu Jurinha ainda tentou se desculpar com o casal. Não sei se teve grande sucesso. A verdade tinha sido dita.
Quem curtiu mesmo o disco de Gal Costa fui eu. Para mim, um dos melhores discos dela. Havia músicas inesquecíveis como Festa do Interior e Açaí, de Djavan.
Açaí me traz uma outra lembrança muito gostosa. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos. Eu lembro da minha prima Raquel, com uns 3 ou 4. Sempre linda, bochechuda, alegre e sorridente. Raquel adorava a música Açaí, um grande sucesso na época, e de vez em quando a cantava.
Agora imagine o que é uma criança nessa idade cantando versos complexos como:
"Açaí guardiã, zum de besouro, um ímã. Branca é tez da manhã."
Raquel cantava a música, toda animada, sorridente, batendo palmas. Eu ficava olhando, admirado, tentando entender as palavras que ela estava dizendo.
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