Sejam persistentes e leiam até o final.
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Um bom trabalho de corpo, unido à ótima dicção e voz bem modulada do ator Fábio Vidal (Seu Bonfim, Divinas Palavras), é o que há de mais marcante no monólogo Erê - Eterno Retorno, em cartaz no Theatro XVIII, no Pelourinho.
O espetáculo é um dos resultados do Projeto Solos do Brasil, que teve coordenação artística de Denise Stoklos, criadora do Teatro Essencial, baseado na performance do ator e na economia cênica, na simplicidade. Direção, concepção e figurino são do próprio Fábio Vidal.
O título do espetáculo aproveita as iniciais do Eterno Retorno, paradigma de Friedrich Nietzche, para fazer a aproximação com o Erê, entidade mitológica que brinca, pirraça, é infantil. É bem inteligente e irônica a transformação de "eterno retorno" nietzchiano em repetição pirracenta, típica do Erê.
Por conta do retorno constante, há repetição de movimentos e falas, e o ator arrisca-s a irritar a platéia. E é, efetivamente, o que acaba por acontecer. Alguns espectadores saem durante o espetáculo. A maior parte aguarda até o final, por um encerramento que não acontece. É, como o texto se auto-intitula, o "espetáculo sem fim", em que o ator só sai do palco depois dos espectadores.
Está formada a concorrência entre platéia e ator, para ver quem abandona primeiro o teatro. Se de início a repetição de movimentos e falas pode atrair a atenção do público, com a impressão inicial de "já conheço", isso acaba por cansá-lo. O espectador começa a se sentir ludibriado.
É uma queda de braço para ver quem resiste mais à pirraça. De certa forma, é o ator que está expulsando a platéia, que, indefesa diante das inventividades do texto teatral, aguarda por alguma novidade, após tantas repetições, ainda que o ator indique que aquele é um espetáculo que não termina. E, como sempre, há aqueles espectadores persistentes - ou ingênuos-, que ficam até o cansaço. De certa forma, é como se o público restante fosse formado de expectadores insistentes de um filme. A película já chegou ao final, mas eles aguardam alguma cena extra após os créditos.
A repetição, no entanto, não é vazia. É como se fosse uma gravação, um velho vinil arranhado ou um Cd defeituoso. Um ato mecânico, quase de um robô, indicando que o homem pode estar se transformando em máquina, com a incorporação de tantos artefatos tecnológicos ao seu cotidiano. O texto une o momento da criação humana com o momento tecnológico atual e futuro, pela ótica do conhecimento científico e filosófico.
Erê traz críticas às inserções nem sempre bem-vindas de inovações tecnológicas ao corpo e à vida humana. Mudanças que acabam por restringir a liberdade. Um exemplo marcante é quando o ator interrompe a narrativa para simular o atendimento a uma chamada de celular. Fábio Vidal consegue transmitir bem ao público a irritação causada por uma situação daquele tipo.
Os aspectos relacionados ao momento político-cultural do Brasil poderiam ter sido enfocados com mais riqueza, já que era essa uma das propostas do Projeto Solos do Brasil. É que as repetições tomam tempo demais. O espetáculo também poderia conter mais elementos que explorassem o "personagem" Fábio Vidal enquanto pessoa, já que o ator/autor está presente no texto como ele mesmo. Poderia utilizar o bom trabalho corporal desenvolvido para o espetáculo com o fim de explorar mais a sensualidade, por exemplo. O personagem seria enriquecido.
Ao espectador resta o alerta de que as máquinas e o consumismo podem efetivamente condenar as pessoas à desumanização. Nesse intuito, o teatro tem papel fundamental. É uma arte não-reprodutível, diferente, por exemplo, do cinema. Uma arte disposta a provocar a reflexão e clamar pela liberdade humana. Nesse viés, ponto para a concepção e atuação de Fábio Vidal.
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