3.12.04

Cordeiros de Glauber

Os dicionários não registram a palavra cordeiro na acepção utilizada popularmente na Bahia. Os cordeiros são a mão-de-obra contratada pelos blocos de Carnaval para segurar a corda que isola o povão dos foliões pagantes e das estrelas da música baiana.

A peça Esse Glauber, em cartaz no Theatro XVIII, tem texto de Aninha Franco, direção de Márcio Meireles e atuação de Rita Assemany e Diogo Lopes Filho. A peça retrata o trabalho dos cordeiros, que formam a parede humana que separa pobres de ricos, bonitos dos feios, instruídos dos ignorantes. Um tema atual e pouco abordado pelos meios de comunicação. Uma realidade local e muito própria, mas que, pelo alcance que o Carnaval tem, talvez seja possível de levar a qualquer lugar do país.

Os dois cordeiros Qualquer Um e Todo Mundo, enquanto aguardam a chegada daquele que virá fazer o pagamento, conversam sobre a vida e o trabalho. A personagem de Rita Assemany insurge-se contra a exploração daquela atividade e - pior dos piores - a possível falta de pagamento após dias e dias de labuta. Ela tenta despertar em seu colega de corda a consciência para os seus direitos. No que parece não ter muito sucesso, já que a propalada alegria do Carnaval, somada à ignorância, parece dissolver qualquer tipo de angústia causada por questionamentos econômicos e sociais. Enquanto isso, o seu colega tenta assediá-la.

O Carnaval no qual os cordeiros trabalham tem o tema "Deus e o Diabo na Terra do Sol", o que foi utilizado para fazer um gancho para o assunto Glauber Rocha. "Quem é esse Glauber?", perguntam-se os cordeiros, deixando clara a ignorância sobre um personagem do contexto histórico-cultural em que estão inseridos - e tema da festa da qual efetivamente fazem parte.

Um espetáculo tocante, fundo e pungente, mas suavizado pelo tom alternadamente cômico dos personagens. Uma conquista do texto, da direção e das atuações. Se não fosse pelas risadas despertadas, o assunto daria um tom tristíssimo ao espetáculo, conduzido pelas inquietações da personagem sob a emocionante atuação de Rita Assemany. O personagem de Diogo Lopes Filho faz o contraponto. É o marmanjo que só quer curtição, que "não tá nem aí". O ator tem ótima atuação, incluindo os trejeitos, modos de fala e expressões faciais do povo de Salvador, sem cair na caricatura.

A peça tem vários números musicais, interpretados pelos atores, acompanhados de músicos no palco. As letras são interessantíssimas. Escrachadas do primeiro ao último verso, são provenientes da verve de Aninha Franco. Se a presença dos músicos é destacada pelo som ao vivo e pela caracterização de uma banda de bloco de Carnaval, a proximidade com o público causa certo estranhamento. O palco do XVIII é pequeno, os percussionistas ocupam muito espaço e não parecem estar à vontade.

Exploração - Esse Glauber toca em um ponto doloroso do mercado de trabalho baiano. Pessoas são contratadas por diárias míseras, ficam sujeitas à violência, maus tratos, até fome e sede, uma vez que o lanche fornecido não é considerado suficiente. E ainda precisam investir os seus calçados - será que as solas chegarão inteiras aos últimos dias de Carnaval?

Até bem pouco tempo, os cordeiros ainda estavam expostos, sem nenhuma proteção, ao som ensurdecedor dos trios elétricos. Agora, pelo menos, eles possuem protetores auriculares. A discussão é levantada em um momento em que associações de cordeiros são formadas. Será essa a solução? A peça não toca nesse ponto, preferiu dar ênfase aos temas da pobreza, da falta de educação e da relação homem-mulher nas classes mais baixas. Os cordeiros são o resultado da baixa escolaridade, de falta de perspectiva profissional e da ganância dos donos dos blocos. Sai mais barato contratá-los do que a empresas de segurança, por exemplo. O trabalho de pesquisa do roteiro foi feito a partir de material em vídeo da jornalista Amaranta Cesar.

Mas não pense que tudo é dificuldade e desprazer. Os cordeiros tem a compensação de participar da festa, próximos dos cantores e bandas, além de ganhar algumas sobras de bebidas dos foliões. De algum modo, eles se sentem incluídos alí, naquele microcosmo social temporário. O grande sonho é chegar até o bufê dos camarotes. Mas isso não é privilégio deles, é algo compartilhado por boa parte da classe média.

Esse Glauber consegue conectar o tema dos cordeiros com a figura de Glauber Rocha, concebendo um gancho interessante para abordar um tema tão presente na atualidade baiana: os limites que separam as diferenças econômicas e sociais. Sendo assim, a corda dos blocos de Carnaval, que separa o povão da elite, é talvez um dos mais representativos símbolos.

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