21.9.04

Conta, vai
A madrugada chega e o vinho me atiça. O aroma amadeirado sobe à cabeça me deixando tonto e sensível. O gosto do vinho tinto que permanece rascante na língua. Eu me revolvo e me contorço cheio de lembranças que me atormentam. Volto ao passado recente e vejo pêlos que se acumulam próximos à minha boca e ao meu céu de estrelas. Lembro de gostos que passam como imagens rápidas de cinema, em um filme ágil de ação e drama.

Lembro dos cheiros fortes que atormentavam as minhas sugestões de desejos, que permaneciam se repetindo e repetindo, soando como sinos insistentes em minha cabeça. O desejo que se revelava cada vez mais intenso e irreconhecível, sob a forma de descontrole, de doce desespero.

O vinho sobe à mente por brumas azuladas e macias, que me fazem sentir como em um sonho inquieto. Imagens que se propagam em ondas contínuas, que distraem os sopros de criação. O vinho é quente e é colorido em um tom indefinível, que produz manchas resistentes em meus arredores, um legado para a posteridade imediata. Com os aromas, permitidos ou não, desfaço a teia que me aprisiona em conceitos pífios. Consigo alcançar uma dimensão ainda não imaginada e pouco prevista em uma atmosfera de palavras mágicas, que vão aumentando e aumentando, prestes a explodir. Palavras que podem ser ásperas, podem ser gentis, podem aprisionar e podem transportar para outra galáxia.

E a madrugada vem, resistente. Fruto da semana que se arrasta para carregar o peso deixado no caminho. A noite, aquela que chama com suas vozes soturnas de intranquilidade, traz novas sugestões. O vinho é da cor da noite e tem o sabor do amanhecer desolado, brilho saturado de informações dispensáveis, ansiando pelo sol que irá nascer para trazer um dia com mais alguma esperança.

A noite comanda um lote de oportunidades imperdíveis, de realização do que a semana prometeu. Três horas de promessa de felicidade eterna, planejada por outras longas horas. Alguns minutos de lento desespero, de vazio inclemente, de dor pungente. As horas passam e a promessa se esvai como a fumaça azul do cigarro.

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